17/07/2012 - MMC - Movimento de Mulheres Camponesas
Economia verde-financeira associada ao novo código florestal aumenta caos fundiário e ambiental

Há poucos dias, o atual presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Gerson Teixeira, chamou atenção em artigo veiculado pela internet para uma mudança introduzida pelo novo Código Florestal (Art. 41, parágrafo 4), que institucionaliza os Títulos de Carbono e Cotas de Reservas Legais como mecanismo de comércio de crédito de carbono, instrumento financeiro que se propõe a vender excessos de oxigênio gerados pelas florestas nacionais em compensação aos setores emissores líquidos de dióxido de carbono na atmosfera.

Essa iniciativa, analisada sob os enfoques fundiário, ambiental e internacional, a depender da implementação que venha a ter, contém riscos sociais enormes, que provavelmente passaram desapercebidos, exceto pelos espertos caçadores de oportunidades a qualquer custo. Vamos tentar traduzir para o leitor esses riscos, associados à via financeira da economia verde e da sua conexa internacionalização do mercado de terras, que a nova norma do Código Florestal pretende introduzir.

Títulos de Carbono e Cotas de Reservas Legais são títulos patrimoniais novos, que ‘proprietário e possuidores’, conforme o texto legal, uma vez emitindo-os, convertem o ativo real a que se reportam (território florestal sob comércio) em direito de propriedade do comprador. Negociados em Bolsas de Valores ou de Commodities, tais títulos seriam via certa e direta da internacionalização do mercado de terras, principalmente das terras de vasta cobertura florestal natural – a Amazônia Legal brasileira em especial, mas não apenas. A avaliação financeira desses créditos/débitos de carbono irá depender evidentemente do ‘valor’ que esse comércio venha a alcançar no mercado global.

Por outro lado, títulos patrimoniais para negociação no mercado financeiro requerem titularidade legal reconhecível, sob pena de a transação envolvida não se efetivar. Aí reside um grave problema brasileiro, de natureza fundiária, que está envolvido na questão. A titularidade da esmagadora maioria dos territórios das florestas em Parques e Reservas, Terra Indígena e Terras Devolutas, é da União ou dos estados, não obstante em toda essas áreas públicas haver intrusão de grileiros e em pequenas dimensões de posseiros familiares. Essas terras públicas, para entrarem no mercado financeiro, no formato que o Código Florestal institui, precisariam ser privatizadas legalmente, para somente então serem financeirizadas e internacionalizadas.

Esse processo que a economia verde de vertente financeira persegue ignora absolutamente a situação agrária do país, a população camponesa e, por que não dizer?, também o meio ambiente. Isto porque crédito de carbono emitido a partir do fato natural (absorção de dióxido e emissão de oxigênio) não envolve nenhum trabalho humano, mas sim a captura de uma renda fundiária ambiental mundial, por conta de uma ilegítima apropriação privada do território. Tampouco melhora a situação ambiental das regiões nacionais de agricultura avançada, que também poderiam compensar seus débitos com compra de títulos no mercado financeiro.

É necessário olhar com muita cautela a regulamentação deste texto legal (Código Florestal). Isto porque muito astutos de ocasião, percebendo um pouco a exaustão do ‘boom da commodities’ que caracterizou o ciclo expansivo primário-exportador da última década, podem estar tentando ensaiar um movimento tìpicamente financeiro de internacionalização do mercado de terras, sob etiqueta verde.

Aparentemente, o governo Dilma encampou desapercebidamente a jogada dos verdes de vertente financeira. Terá a oportunidade da regulamentação legal para colocar freios na especulação mais escandalosa, sob pena de produzir uma enorme confusão fundiário-financeira. Até certo ponto, a desordem de titularidades fundiárias no país como um todo e na Amazônia Legal em particular são um sério obstáculo à perpetuação da engenharia financeira preconizada no Código Florestal. Mas como bem observou o competente geógrafo Ariovaldo Umbelino, uma nova Lei de Terras, à imagem e semelhança daquela de 1850, pode ser o sonho ruralista para realizar essa nova vertente financeira do mercado de terras.

Guilherme Costa Delgado, doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.
FONTE:institutocarbonobrasil.org.br

Nota de repúdio à portaria do Governo Federal que manipula decisão do STF

O Conselho Indigenista Missionário, Cimi, vem a público manifestar indignação frente à publicação, neste dia 17 de julho, da portaria 303, no Diário Oficial da União.

O Governo Federal, fazendo uso da Advocacia Geral da União, manipula, escandalosamente, a decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada no âmbito da Petição 3388, que diz respeito exclusivamente ao caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima, não possuindo, portanto, efeito vinculante. Nesse sentido, já há três decisões liminares de Ministros do STF que manifestam esse entendimento. Além do mais, o caso ainda não transitou em julgado. Com a presente portaria, o Governo desvirtua a decisão da Suprema Corte generalizando e retroagindo a aplicabilidade das chamadas “condicionantes” emanadas no julgamento do caso citado.

O absurdo é tamanho que o Executivo chega ao ponto de determinar que sejam “revistos” os procedimentos em curso que estejam em desacordo com a portaria, bem como, que sejam “revistos e adequados” até mesmo os procedimentos já “finalizados”. Em momento algum os Ministros do STF deram qualquer indicação de que as “condicionantes” teriam essa extensão. Esse dispositivo previsto no artigo 3 da referida portaria, constitui-se um ato inconseqüente e de extrema irresponsabilidade na medida em que propõe a revisão das demarcações de terras já concluídas, o que geraria uma instabilidade jurídica e política sem precedentes. Na prática, isso significaria a conflagração generalizada de conflitos fundiários envolvendo a posse das terras indígenas, inclusive a reabertura daqueles anteriormente solucionados com o ato demarcatório.

A real intencionalidade do Governo brasileiro ao editar a presente portaria não é outra senão a de tentar estancar de vez os procedimentos de reconhecimento de demarcação de terras indígenas no país. Usando uma decisão do STF como subterfúgio, o Governo Federal, mais uma vez, “dobra os joelhos” e, rezando a cartilha do capital ditada pelo agronegócio, tenta pôr uma “pá de cal” sobre o artigo 231 da Carta Magna de nosso país.

A presente portaria é uma excrescência jurídica e dessa forma deverá ser tratada. Constitui-se, no máximo, numa peça política mal formulada. Trata-se de mais um ato de profundo desrespeito e afronta aos povos indígenas e seus direitos constitucionalmente garantidos.

O Cimi tem plena convicção de que os Ministros do STF não permitirão que suas decisões sejam usadas para atacar os preceitos constitucionais vigentes.

O Cimi, junto com os povos indígenas do Brasil, fará uso de todos os meios jurídicos possíveis para demonstrar a ilegitimidade e a ilegalidade desta portaria.

Brasília, DF, 17 de julho de 2012

Conselho Indigenista Missionário
www.cimi.org.br

Camponesas para a soberania alimentar

Na América Latina e Caribe as agricultoras familiares produzem 45% dos alimentos que consumimos. Inegável, portanto, a importância do trabalho delas para nosso cotidiano. Nesta entrevista, Vanessa Schottz (da FASE) e Elisabeth Cardoso (do CTA/ZM) lembram, no entanto, que este trabalho é silencioso, invisível e, também por estas razões, desvalorizado por boa parte da sociedade.

As entrevistadas, que são do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia, falaram também de políticas públicas para mulheres no campo e avaliaram a Cúpula dos Povos. Durante o evento, a participação das mulheres chamou a atenção desde a marcha que abriu a série de manifestações que tomaram as ruas do Rio de Janeiro até as diversas atividades autogestionadas realizadas por elas.

Foi a partir destes espaços que a discussão sobre o papel das mulheres na sociedade hoje – e naquela que os grupos querem construir – foi tomando corpo até a afirmação do feminismo “como instrumento da construção da igualdade” na Declaração Final da Cúpula. O documento incluiu também a “autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade, e o direito a uma vida livre de violência” como premissas a serem defendidas pelos povos.

Saiba mais sobre a luta das mulheres camponesas na entrevista realizada originalmente para o programa Planeta Lilás, organizado por militantes feministas na Rádio Cúpula dos Povos:

Vanessa, qual papel das mulheres na agricultura camponesa?

Esta pergunta é importante porque nos dá a oportunidade de dizer que as mulheres não ajudam na agricultura, as mulheres trabalham na agricultura. Elas estão na produção de alimentos. Elas estão no resgate e na conservação das sementes. Elas estão nos processos de resistência nos territórios, contra o agronegócio. Elas estão no cuidado com a alimentação. As mulheres assumem uma papel importante – e protagonista – neste momento em que estamos discutindo sustentabilidade, mas também estamos discutindo soberania alimentar. As mulheres têm um papel fundamental tanto na bandeira de luta da soberania alimentar quanto nas práticas agroecológicas e nas práticas de consumo sustentável. Elas estão em vários espaços, fazendo as suas lutas no dia-a-dia, e também se organizando e lutando para garantir a visibilidade o seu trabalho.

Beth, você pode dar um exemplo das mulheres lá da Zona da Mata, sobre o papel que elas cumprem, para entendermos melhor essa afirmação da Vanessa?

Na Zona da Mata, em Minas Gerais, temos um bom exemplo porque lá é forte a crença de que o que sustenta a região é a produção de café. As mulheres estão presentes – e são fundamentais – na produção do café. E isso é sempre bom lembrar. Mas elas têm descoberto recentemente ter um papel muito mais importante como produtoras de alimentos. Elas coordenam todo o trabalho de produção dos quintais: das plantas, das hortas e da produção de animais.

No nosso trabalho com agroecologia na região criamos um calendário para elas anotassem produção e consumo. Fizemos isso porque geralmente não se valoriza muito a produção para o autoconsumo. E elas se assustaram depois de cerca de três meses quando perceberam que o equivalente de renda gerado pelo autoconsumo é superior à renda gerada pelo trabalho com o café.

Isto é emblemático em relação à história da produção das mulheres. O trabalho delas acaba invisível porque o autoconsumo não está no PIB e não é contabilizado em nenhuma economia – nem para os municípios, nem para a família. Perceber que o trabalho delas gerava mais renda que o café foi importante para elevar a autoestima e para que elas se percebessem como fundametais no trabalho de produção. Se não fossem as mulheres fazendo esse trabalho de produção para o autoconsumo, a agricultura familiar no Brasil não se sustentaria. A renda da agricultura familiar hoje na comercialização de produtos, mesmo acessando os mercados institucionais, só é suficiente por causa da produção familiar para o autoconsumo. Os agricultores familiares compram muito pouca coisa fora das suas propriedades. Na Zona da Mata de Minas temos valorizado bastante este fato não só no que se refere à produção de alimentos, mas também com a produção de medicinas naturais, muito importante para a manutenção da saúde das famílias.

Uma das pautas principais desta Cúpula dos Povos é a luta contra a “mercantilização da vida”. E aí acredito que falamos não só da natureza, das florestas, dos serviços ambientais, mas também dos modos de vida. Valorizar a produção para o autoconsumo é um jeito de fugir do mercado, Vanessa?

É isso. E se a gente parar para pensar, não existe nada mais radical na luta por soberania alimentar do que a produção para o autoconsumo. Porque é a via da alimentação sem passar pelo mercado. E é justamente isso que o mercado tenta desconstruir de várias formas. Uma é a ocupação dos territórios com monocultura – porque sem diversidade as famílias ficam dependentes da compra de produtos nas grandes redes de supermercado. Outra maneira é a publicidade que estimula o consumo dos produtos industrializados. Então essa prática do autoconsumo, que está muito ligada ao trabalho das mulheres, é fundamental no movimento de resistência contra o agronegócio, contra o uso do território para a produção de monocultivo para a exportação. É uma prática que precisamos valorizar e dar visibilidade.

E é importante dizer também que as mulheres não estão apenas trabalhando para o autoconsumo. Entre as mulheres que compõe o GT de Mulheres da ANA vemos que um grande número comercializa sua produção para feiras e também para o mercado institucional de alimentos via PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] e PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], apesar de enfrentarem muitas dificuldades. A questão é que as políticas públicas, da forma como estão estruturadas, não consideram o trabalho e as necessidades das mulheres.

E vocês podem dar exemplos que explicam porquê essas políticas são insuficientes para atender às necessidades das agricultoras?

Vanessa – São várias questões. Por exemplo: para que qualquer agricultor ou agricultora familiar acesse as políticas públicas para Agricultura Familiar no Brasil é necessário acessar o “Documento de Acesso e de Aptidão ao Pronaf”, que chamamos de DAP. A DAP tem uma série de problemas, e passa pela lógica de que é um documento “familiar” no qual cabe sempre ao homem o protagonismo. Então se na família o homem é professor ou agente comunitário de saúde e a mulher é agricultora ela não consegue ter sua profissão reconhecida. Ou seja, muitas mulheres estão produzindo, não conseguem acessar esse documento e, portanto, não conseguem ser reconhecidas como sujeito por essas políticas.

Outras tantas vezes, os homens apresentam os documentos e recebem o dinheiro pela esposa. Achamos que isso é muito ruim, pois além de impedir a visibilidade do trabalho delas, impede o acesso à renda, um elemento que consideramos importante para o processo de construção de autonomia. Acreditamos que autonomia econômica e autonomia política são vias que precisam andar juntas para permitir uma relação de igualdade entre homens e mulheres.

Vocês estão falando a partir do GT de Mulheres da ANA. Beth, você pode explicar porque existe e como funciona este Grupo de Trabalho?

A ANA é a Articulação Nacional de Agroecologia, uma rede formada por redes regionais e movimentos sociais de todo o Brasil que é organizada internamente por Grupos de Trabalho. O Grupo de Trabalho das Mulheres é um espaço de auto-organização a partir do qual refletimos sobre questões de gênero, por exemplo, a partir do nosso olhar sobre as políticas públicas. Também fazemos um trabalho de sistematização de experiências de mulheres na agroecologia que ajuda nesta reflexão. A partir do GT de Mulheres refletimos também sobre a própria ANA.

Para conhecer melhor a articulação vale a pena ver a página na internet:www.agroecologia.org.br. Ali é possível encontrar uma publicação do GT de Mulheres com as experiências sistematizadas na região nordeste – também estamos sistematizando experiências do sul e da Amazônia, mas ainda não estão publicadas. É um trabalho muito rico porque a partir das experiências das mulheres aprendemos muito. Inclusive, acho que isso é uma reflexão para a ANA como um todo.

Uma coisa que a gente se esforça também é para que em todos os espaços da ANA haja participação das mulheres. Acreditamos que a articulação é um espaço democrático e por isso ficamos até tristes se em um evento misto não haja, pelo menos, 50% de mulheres.

E o que acharam da Cúpula dos Povos? Vai fazer alguma diferença no futuro?

Vanessa – Eu acho que a Cúpula dos Povos cumpriu o seu papel de dar visibilidade, primeiro, às críticas que fazemos às falsas soluções do capital com o nome de “economia verde” com a justificativa de superar uma crise que “eles” próprios causaram. Ao mesmo tempo, mostramos que existem alternativas viáveis sendo construídas pela sociedade, pelas mulheres, pelos índios, pelos camponeses. Então, eu acho que a Cúpula deixou essa mensagem. E deixa também uma mensagem importante de que sustentabilidade, diversidade, soberania alimentar, são temas e bandeiras de luta que precisamos cuidar para que não sejam apropriadas pelo capital.

A gente pôde ver aqui perto, no Píer Mauá, uma exposição montada pelo agronegócio como evento oficial da Rio+20 onde dizem fazer agricultura sustentável, onde dizem contribuir para a preservação do meio ambiente, se apropriando de bandeiras de lutas da sociedade com uma cara-de-pau impressionante. E para nós está posto o desafio de dialogar com a o resto da sociedade, desconstruir todo o discurso falso montado pelo agronegócio de que este seria o único modelo possível para produzir alimentos. O modelo deles é este com veneno, com transgênicos, com sementes estéreis, com alto consumo de alimentos industrializados, e com grande impacto sobre o meio ambiente, ao contrário do que tentam nos fazer engolir. Aqui [na Cúpula dos Povos] estamos trazendo outra mensagem: o modelo de produção da agroecologia – que defendemos – não pode conviver com esse modelo insustentável [do agronegócio] que contribui mais e mais para destruir o patrimônio da humanidade – patrimônio cultural, toda a biodiversidade.

Então, eu acho que a Cúpula está cumprindo muito bem esse papel, mas fica o desafio daqui para a frente de continuarmos desconstruindo esse discurso que visa confundir a população e – ao mesmo tempo – continuar apontando falsas soluções para gerar mais renda e mais lucro em cima da crise.

E você, Beth? Como avalia esta Cúpula?

Além do que disse a Vanessa, acrescento que para mim a Cúpula dos Povos foi um grande espaço de convergência dos movimentos sociais, não só do Brasil, mas da América Latina e de outras partes do mundo. E foi muito importante para dar visibilidade para o movimento feminista. Achei importante demais estes dias em que a gente ficou convivendo aqui com os diversos movimentos. Eu acho que crescemos com isso, aprendendo a incorporar a pauta dos outros nas nossas lutas também. Eu acho que as manifestações foram maravilhosas. Todos os dias a gente via passeatas nas ruas, muita mobilização e ação direta. Acho que isso fez muito bem, não só para os movimentos, como também para a sociedade em geral – para as pessoas verem que nem tudo que está sendo feito em relação ao meio ambiente é igual. Existem diferenças, idéias diferentes, e o importante é a gente estar aqui colocando isso: existe algo diferente do que se discute na conferência oficial da ONU.

Vanessa Schottz e Elisabeth Cardoso: há radicalidade no cotidiano das agricultoras 
Lívia Duarte, Comunicação / FASE 
www.fase.org.br 
(21) 2536 7359