11/05/2018 - MMC - Movimento de Mulheres Camponesas
“Gênero, raça e classe são três eixos estruturantes que constituem a nossa sociedade”

É LUTA!, de Ísis Menezes Táboas, aborda os desafios do combate à violência contra as mulheres no campo

Fruto de uma sociedade patriarcal, capitalista e racista, a violência contra as mulheres atinge todas as classes sociais, raças e etnias. No caso das mulheres do campo, a situação agrava-se pela distância de órgãos públicos especializados no combate à violência – em sua maioria localizados nas áreas urbanas, além da falta de acesso à terra, ao crédito e a demais políticas públicas para o campo. É a partir desse recorte que Ísis Menezes Táboas lança o livro “É LUTA! Feminismo Camponês Popular e enfrentamento à violência”, inspirado em sua pesquisa de mestrado, vencedora do “Prêmio UnB Dissertação 2015”, eixo Direitos Humanos e Cidadania, defendida na Universidade de Brasília. A partir de um diálogo com as coordenadoras nacionais do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), e de análise de outras fontes primárias, a autora destaca os principais desafios nesse combate à violência, os fenômenos que a envolve, assim como a práxis do MMC para enfrentá-la. É LUTA! destaca, ainda, a importância da auto-organização das mulheres nesse contexto de enfretamento à violência, apontando as contribuições que o feminismo camponês popular tem realizado nesse processo, sendo este construído coletivamente pelas camponesas latino-americanas. Doutoranda em Direito, Estado e Constituição pela mesma universidade, Ísis tem experiência como advogada de mulheres em situação de violência (Projeto Maria da Penha-UnB), além de ser professora de Direito e pesquisadora do grupo O Direito Achado na Rua.

Confira a entrevista concedida pela autora ao MMC:

Ísis, como você analisa, no livro É luta, a imbricação entre gênero, raça e classe a partir da construção do feminismo camponês popular?

Gênero, raça e classe são três eixos estruturantes que constituem a nossa sociedade. Há uma relação simbiótica entre patriarcado, racismo e capitalismo, uma associação em que estas três subestruturas de exploração-dominação se potencializam e se beneficiam mutuamente, sendo determinantes em nossa análise. Estas subestruturas foram originadas em diferentes momentos históricos e têm características específicas. Patriarcado é o mais antigo, logo o racismo, e o capitalismo encontra neles um terreno fértil para sua instalação e reprodução. Assim, os três se fundem de maneira profunda, como disse Heleieth Saffioti, formam um “nó”. As determinações de gênero e raça, por exemplo, podem maximizar os lucros capitalistas e atuam de forma conveniente à conservação das estruturas de classe. O capitalismo, de outro lado, é obstáculo à realização plena das mulheres, porque ora superexplora, ora não remunera a mão-de-obra feminina, porém nossa emancipação econômica não nos liberta de todas discriminações sociais. No livro, apontamos que estas dinâmicas de exploração e dominação de um sujeito pelo outro se articulam sob a forma de ideologia e violência na maioria das sociedades contemporâneas e, neste processo, tornam-se um sistema complexo de dominação-exploração: o patriarcado-racismo-capitalismo.  Dessa forma, utilizando essa perspectiva de totalidade das relações do ser social, e compreendendo a categoria trabalho como central para a análise, fazemos o recorte analítico para a construção do feminismo camponês popular pelas mulheres camponesas do MMC, e observamos que aí existem desafios próprios impostos pelo agronegócio, por empresas transnacionais que utilizam tecnologias químicas, por empreendimentos latifundiários de monocultura e, ainda, pelas múltiplas jornadas de trabalho que grande parte das mulheres camponesas desenvolvem desde a infância, trabalho que é, historicamente, invisibilizado, não remunerado e não reconhecido como passível do recebimento de benefícios sociais e assistência previdenciária. Assim, o patriarcado-racismo-capitalismo atua de forma própria no contexto camponês, o que faz com que o feminismo camponês popular estabeleça bandeiras de luta, análises e táticas adequadas à sua realidade, sem que para isso se desvincule das análises da totalidade e das lutas da classe trabalhadora.

Quais os principais desafios que você tem observado no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres do campo? 

Primeiro, é importante afirmar que as dinâmicas de exploração-dominação do sistema patriarcal-racista-capitalista utilizam a violência como um dos seus pilares de sustentação. Assim, a violência doméstica e familiar contra mulheres é utilizada para manutenção das relações desiguais de poder entre homens e mulheres, e perpassa todas as classes sociais e raças, está nas relações das famílias camponesas, das famílias que vivem nas periferias, nos bairros de “classe média” e também nos bairros elitizados. Importante destacar também que apesar de serem originadas pelo mesmo sistema, as situações de violência e as formas de enfrentá-las assumem contornos específicos em cada contexto e classe social. Por isso, como você disse, o enfrentamento à violência contra as mulheres do campo tem seus desafios próprios.

No livro, foram identificados três desafios centrais para o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra mulheres camponesas: 1) promover a educação e formação política como práticas capazes de fomentar o processo de formação de consciência para construção de relações livres de violência; 2) promover duas dimensões inter-relacionadas, o protagonismo das próprias mulheres em seu processo de rompimento do ciclo da violência, e a perspectiva coletiva do processo de luta social para libertação feminista; e 3) a necessidade de promoção da autonomia econômica das mulheres camponesas. Vale advertir que a violência não decorre da dependência econômica, mas este é elemento presente em parte considerável dos casos conhecidos, e que se soma a outros fatores socioculturais de modo a agravar a situação.

E como você avalia a efetivação da Lei Maria da Penha nesse processo?

Aponto essa efetivação também como uma questão a ser trabalhada. A Lei é compreendida como um grande avanço, cria mecanismos de prevenção, educação para não violência e proteção das mulheres que buscam romper o ciclo de violência que vivenciam. Sem dúvida, a Lei Maria da Penha contribui em diversas esferas para o enfrentamento à violência, inclusive com a sensibilização sociocultural rumo à efetivação do direito humano de viver livre de violência, afinal, é a lei mais conhecida do país. Segundo o Instituto Patrícia Galvão, 98% da população brasileira já ouviu falar da Lei Maria Penha. Porém, é evidente a discrepância entre o que é previsto na lei e as condições reais para sua efetivação no campo. Por exemplo, se uma mulher camponesa percebe estar na iminência de sofrer uma violência, e precisa utilizar a medida protetiva de urgência de afastamento do agressor de sua casa, ela segue o procedimento padrão e chama a polícia. Daí nos perguntamos: quanto tempo a polícia ou qualquer agente público demoraria para chegar até a sua casa? Ela poderia esperar até que a ajuda chegasse? Há muitas camponesas que vivem em áreas de difícil acesso ou muito distantes de serviços públicos, e até mesmo dos vizinhos. Dessa forma, alguns dos mecanismos da lei têm grande potencial para evitar situações de violência e contribuir com o rompimento do ciclo de violência das mulheres que vivem nos centros urbanos, mas não têm a mesma eficiência para as mulheres camponesas. O enfrentamento à violência doméstica e familiar no campo tem seus desafios próprios e carece de políticas públicas adequadas à sua realidade.

O livro também está fundamentado no Direito Achado na Rua. Poderia explicar quais são as principais contribuições desse movimento para a luta das mulheres?

O Direito Achado na Rua reconhece que o direito pode se manifestar a partir das institucionalidades estatais, do sistema político e judicial, mas, para além dessas instituições, afirmamos que o direito também se expressa, se cria e se efetiva na “rua”. Rua como metáfora do ambiente onde se protesta, se manifesta, se ocupa, onde se faz política com o intuito de garantir, defender, acessar e constituir direitos que emergem do povo, sua legítima fonte material. É o povo, através da mobilização popular, quem produz e mantém vivo o processo contínuo e dialético de construção de direitos, por meio de processos de realização coletiva, não como tarefas a serem cumpridas isoladamente. Neste sentido, quando observamos as lutas para construção de direitos das mulheres camponesas a partir das lentes de O Direito Achado na Rua, vemos o MMC se constituir como sujeito coletivo de direitos, em sua condição de potência política portadora de uma capacidade criativa e instituinte de direitos. Ou seja, o MMC emerge como sujeito coletivo que desenvolve lutas feministas, populares e camponesas capazes de fundar e fomentar a construção de direitos humanos, com vistas a construir um processo de libertação que, para além da conquista de direitos das mulheres, signifique a transformação radical das relações sociais como um todo. De fato, a luta das mulheres não impacta somente na condição das mulheres, pois altera a correlação de forças que historicamente constitui a realidade social, e assim carrega consigo o potencial de impacto sobre as próprias estruturas de poder na sociedade patriarcal-racista-capitalista.

 

Livro: “É LUTA! Feminismo Camponês Popular e enfrentamento à violência”

Autora: Ísis Menezes Táboas
Editora Lumen Juris (186p.)
https://lumenjuris.com.br/shop/direito/direitos-humanos/e-luta-2018