22/03/2022 - MMC - Movimento de Mulheres Camponesas
Artigo de militante do MMC fala das memórias e vivências camponesas diante das mudanças climáticas

Artigo da camponesa Ana Claudia Rauber, licenciada em Ciências Biológicas, Mestre em Agroecologia e Desenvolvimento, guardiã de sementes e militante do MMC no Paraná, traz um olhar profundo sobre a sabedoria camponesa e sua reflexão sobre as mudanças climáticas.

 

Climatologia camponesa: memórias e vivências diante das mudanças climáticas

Ana Claudia Rauber

 

 

Conhecer o “tempo” é planejar nossa roça

 

A vida de quem vive no e do campo, ou seja, nossa vida camponesa depende diretamente do “tempo”, do tempo atmosférico, do clima. As nossas atividades, nosso trabalho é planejado e executado conforme as condições climáticas, o tamanho dos dias, as estações do ano. A cada instante estamos nos perguntando: será que vai chover? Será que vai faltar chuva? Será que vai dar tempo bom? Será que vai esfriar a ponto de gear?

 

A necessidade de entender o clima fez com que as comunidades tradicionais, aqui me refiro ao campesinato, da qual faço parte, que ao longo do tempo resistiram e conseguiram manter seu modo de viver e de existir, foi através da observação da natureza que realizaram interpretações para ter uma maior segurança em realizar as atividades agrícolas.A esses saberes denomino de climatologia camponesa.

 

Esses conhecimentos foram construídos milenarmente, portanto, uma construção histórica, coletiva, intercultural e intergeracional. São conhecimentos repassados dos pais para os filhos, também através do convívio entre os diferentes povos, em nosso caso, vivemos num pedacinho de chão da América Latina, Pátria Grande denominada de AbyaYala pelos povos originários (ESTERMANN, 2006), Brasil, Paraná, Território da Cidadania Cantuquiriguaçu, Cantagalo.

 

Território este, onde viviam os povos indígenas guarani, kaingang e xetá nas extensas Matas de Araucárias (IPARDES, 2007). Tanto os povos quanto as florestas foram fortemente impactados pelos ciclos econômicos do século XIX, com a extração da erva-mate e madeira, principalmente o pinheiro-do-paraná. E depois com a modernização da agricultura nos meados do século XX.

 

Ao longo deste processo de reocupação das terras, foram se criando resistências por parte dos indígenas, das comunidades negras e quilombolas, comunidades faxinalenses e os camponeses que tiveram acesso à terra através de vários assentamentos de reforma agrária existentes no Território Cantuquiriguaçu, além dos camponeses pequenos proprietários (SONDA; BERGOLD, 2013).

 

Portanto, reconhecemos em nossa prática cotidiana camponesa muitos conhecimentos, costumes, hábitos dos diversos povos que aqui vivem e viveram, e que nos permitem conhecer e interpretar os fenômenos e elementos que ocorrem na natureza.

 

Foram estes conhecimentos do ambiente natural em que estavam vivendo, um dos principais fatores que contribuiu para que o campesinato desenvolvesse esse modo de vida e resistisse aos avanços do processo de modernização conservadora da agricultura durante a implantação da Revolução Verde no país. E ainda continuamos resistindo contra os avanços do capitalismo no campo, que hoje é chamado de agronegócio, e que vem impactando diretamente sobre a vida e os territórios das comunidades tradicionais.

 

Ao perceber que muitos destes saberes vão se perdendo com o tempo, vão deixados de lado a medida que os camponeses vão deixando o campo. Ou que seus modos de vida são alterados pela produção de mercado, onde a família agricultora passa a realizar atividades “impostas” como a produção de grãos, principalmente a soja ou a produção de leite. Juntamente com os avanços da tecnologia e acesso a informação sobre a previsão do tempo no rádio, televisão e internet.

 

Dessa forma, esses conhecimentos a respeito do clima vão se perdendo no esquecimento do imaginário popular, pois aquilo que não se utiliza no cotidiano deixa de ter significado real e concreto. Portanto, neste ensaio procuro fazer um resgate das memórias de minha família e também nas nossas vivências atuais, pois procuramos manter vivos estes saberes em nossa práxis de agricultura camponesa agroecológica.

 

Os sinais estão nos céus e na terra

 

É preciso parar, prestar atenção, sentir a pulsação da vida, ouvir os sons da natureza, admirar e compreender o colorido dos céus… é necessário (re) construir e (re) significar um modo de viver que seja o mais harmônico com o ambiente onde estiver. Somente essa forte ligação/interação com a Natureza, com a Mãe Terra, com a Pacha Mama que irá permitir a verdadeira conexão e o verdadeiro sentido de viver de forma saudável e sustentável.

 

Nossos povos, nossos ancestrais já sabiam fazer isso. Convido o(a) leitor(a) a fazer essa viagem junto conosco, a olhar diferente, a ouvir diferente, a sentir diferente. Convido a conhecer a climatologia camponesa:

 

Os sinais dos animais

 

Iniciamos contando como os animais percebem as alterações da atmosfera, provavelmente os seres humanos também tinham essa sensibilidade e conseguiam prever essas mudanças, pois essas habilidades garantiram a nossa sobrevivência, no caso de uma tempestade conseguiam se abrigar, ou de um frio severo poderiam se precaver de alguma forma, e assim por diante.

 

Ao longo da evolução humana fomos criando estratégias para enfrentar as adversidades ambientais, construindo abrigos, depois casas, tendo mais conforto, assim essas percepções, sensibilidades foram se perdendo com o passar dos anos.

 

No entanto, para garantir a proteção e consequentemente a sobrevivência, os animais sejam eles domésticos ou selvagens, claro que os domésticos pelo convívio e mudanças de hábitos também já perderam um pouco desta sensibilidade. Mas, ainda apresentam certas características que nos indicam alguns aspectos. Desta forma, os camponeses e as camponesas foram observando o comportamento dos animais e associando com os fenômenos atmosféricos e climáticos e assim podiam se prevenir de alguma forma.

 

Como por exemplo, as vacas quando saem correndo nos potreiros, “escramuçando”, dando cabeçadas ou chifrando os barrancos significa que irá chover. Assim como, as galinhas quando se reúnem e ficam se “pinicando”, ou seja, passando óleo nas penas, estão se preparando para a chuva, pois a gordura produzida impermeabiliza as penas.

 

Quando o tempo “está pra chuva” muitas aves dão o sinal através de sua cantoria. Claro, elas cantam em outras ocasiões também, mas quando a chuva se aproxima, o canto é diferente, a gente sente, é mais forte, mais intenso, mais ligeiro, cada espécie tem as suas peculiaridades.

 

Tem até um ditado popular “saracura que canta na serra, é chuva certa na terra”. As saracuras são as aves mais faceiras, elas são as nossas grandes meteorologistas, basta prestar atenção, quando elas tão toda animadas, cantarolando “quebrei três potes, quebrei três potes, problema é meu, problema é meu…” é certeza que dali uns dias cai uma boa chuva para molhar a plantação.

 

Outras aves também prestam essa maravilhosa assistência climatológica, quando o tirivão no início da noite ou na madrugada faz aquela cantoria também está prevendo chuva. O coró-coró também tem essa sabedoria. O nambuzinho, quando canta no capinzal, também sinaliza chuva para molhar o milharal.

 

O sabiá, é um caso à parte, é lindo de se ouvir, suas canções tão melódicas e inspiradoras que rendem até poesia:

 

“Manhãs frias

Tardes agradáveis

A grama esverdeando

As árvores brotando

As noites iluminadas pelo brilho do vagalume

No ar, o delicioso perfume

Da flor de laranjeira

A florada da cerejeira, guaviroveira e pitangueira

O belo canto do sabiá

A alegria inquietante da corruíra

Anunciam que a primavera se aproxima

Sem dúvida, o melhor tempo que há”

 

Sobre o ilustre sabiá é preciso ressaltar, na primavera seu canto significa a garantia da perpetuação da espécie. Essa cantoria que começa na primavera vai até exatamente dia 3 de fevereiro, lembro quando era criança e minha mãe me dizia isso, eu ficava pensativa: o sabiá fica mudo então? Claro que não! Ele só muda o jeito de cantar, é de uma forma diferente, não é mais melódica, tem vez que nos avisa que vai dar chuva, tem vez que nos avisa que vai esfriar.

 

O joão-de-barro, além de ser um exímio construtor, talvez o mais “permacultor” de todas as aves da floresta, pois nos ensina a construir com terra, também entende da previsão do tempo. Quando a abertura de sua casa é contrária ao norte, significa que vai chover bastante. Quando a abertura é oposta ao sul, quer dizer que vai dar ventos frios.

 

Quando as minhocas começam a sair da terra, é um fenômeno visível principalmente no terreiro, espaço ao redor de casa, é sinal que a chuva está se aproximando. Quando a rãzinha (como é classificada popularmente) é uma perereca (figura 1), canta também está prevendo que a chuva virá nos próximos dias.

 

 

Figura 1- Anfíbio cuja vocalização significa que a chuva está próxima.
Fonte: arquivo pessoal de Ana Claudia Rauber.

 

 

Ainda sobre as chuvas, muitos insetos fazem revoadas quando a chuva está se aproximando, a explicação é que após a chuva teria condições adequadas para formar uma nova colônia. Nessa revoada, as aves aproveitam para fazer sua refeição, diversificar sua alimentação, garantir uma fonte de proteína, algumas aves são tão astutas que pairam no ar caçando os insetos. Geralmente, por causa do tamanho deles e da altura, só vemos os pássaros no ar, então se diz que quando o passarinho está parado no ar é sinal de chuva.

 

Já outros insetos são maiores, conseguimos enxergar, são chamados de aleluia, na verdade são alguns indivíduos de cupins que desenvolvem asas para voar, assim vão mais longe para formar uma nova colônia. Quando esses animais estão voando, pode ter certeza, é chuva certeira.

 

Outros insetos que indicam que vai fazer frio, como por exemplo, umas lagartas escuras, na verdade são larvas de uma espécie de vespa, que andam em bando se deslocando pelo chão. Se eles aparecerem quer dizer que no inverno fará muito frio, certamente estão se deslocando para algum lugar mais seguro a fim de passar a temporada gelada mais protegidos.

 

Outro indicador de friagem, é um besouro danado, que a gente quase nunca vê, mas deixa um rastro bem visível. O inseto corta o galho igual se fosse uma serra, é uma estratégia de reprodução, em que as fêmeas depositam os ovos no galhos que serão cortados. Quando encontramos esses galhos cortados entre o final do verão e o início do outono é um sinal que o inverno será mais rigoroso.

 

Os sinais das plantas

 

As plantas também percebem alterações na atmosfera, e aceleram ou retardam os processos de florescimento, maturação dos frutos e sementes ou perda das folhas. Todas são estratégias de garantir a preservação da espécie, se protegendo caso o frio venha mais cedo.

 

Como o lírio-de-são-josé (figura 2), que é umas das flores mais belas e perfumadas que nasce espontaneamente nos campos, beiras de estrada, e até nas roças (as nossas são todas floridas, é lindo de se ver!), é assim chamado porque floresce próximo do mês de março (19 de março é dia de São José). Às vezes o lírio floresce antes, este ano por exemplo, saíram as primeiras flores no final de janeiro, possivelmente o frio chegará antes.

 

Figura 2– Floração de lírio-de-são-josé indica que o frio a aproximação do frio.
Fonte: arquivo pessoal de Ana Claudia Rauber.

 

 

A macela (figura 3), uma florzinha amarela, que colore os campos na época da quaresma, o costume de colher as flores orvalhadas antes do sol nascer na Sexta-feira-santa ainda está presente na cultura popular. Quando a macela floresce mais cedo, também indica a aproximação do frio.

 

Figura 3- Florada de macela antecipa caso o frio chegue mais cedo. Fonte: arquivo pessoal de Ana Claudia Rauber.

 

 

A nêspera (ameixa-do-inverno) também floresce antes quando percebe que o frio se antecipa. Da mesma forma, a amorinha-do-mato, amorinha-do-inverno, aquela amora-preta que cresce pelas matas de vegetação pioneira, floresceu em novembro, dezembro, e neste ano no final do verão já tem frutos maduros.

 

Outras plantas perdem suas folhas, sinalizando que o frio chega mais cedo ou mais tarde, como a uva-do-japão e o cinamão, isto consiste em uma estratégia de resistir às baixas temperaturas, quando caem as folhas mais no cedo, é sinal que esfria antes também e que o inverno será mais rigoroso.

 

Já outro fenômeno bem interessante e curioso que acontece relacionado às plantas, às vezes, o tempo está parado, sem vento, e do nada, repentinamente, um galho de árvore se quebra na mata, quando isso acontece é sinal de muita chuvarada.

 

Outros sinais estão nos céus, no ar e nos astros

 

Além da observação e interpretação nos sinais dos animais e plantas, existem outros fenômenos que ocorrem e que indicam algum acontecimento climático. A coloração das nuvens, por exemplo, ao entardecer quando as nuvens ficam com a tonalidade de rosa, laranja e vermelho (figura 4) significa que os próximos dias serão ensolarados. Quando ao entardecer as nuvens ficam mais claras, no tom de amarelo, é sinal que nos próximos dias terá chuva forte, temporal. Ao final da tarde quando se forma um arco-íris quer dizer que as chuvas cessarão e fará tempo bom.

 

Figura 4– Tons alaranjados ao entardecer é sinal de dias ensolarados.
Fonte: arquivo pessoal de Ana Claudia Rauber.

 

Outro sinal é a umidade presente no ar, às vezes quando cai uma chuva, e rapidamente sobe aquele vapor d’água, chegamos a enxergar aquelas nuvens “ligeiras” se formando em uma mata e subindo, quer dizer que em seguida irá chover novamente.

 

A serração que costuma ocorrer pela manhã quando tem bastante umidade no ar, pode ser de duas formas. Existe até um ditado popular “serração que baixa é sol que racha”, ou seja, se a serração fica próximo da terra e se dispersa (desaparece), terá um dia muito ensolarado. Ao contrário se tiver serração e subir, isso significa que esta umidade evapora e se transforma em nuvens e nos próximos dias retorna em forma de chuva (figura 5).

 

 

Figura 5- Amanhecer com serração. Fonte: arquivo pessoal de Ana Claudia Rauber.

 

 

Às vezes os pisos e paredes da casa ficam muito úmidos, como se estivessem “suando” ou “vertendo” água, quer dizer que tem muita umidade no ar, o que indica que tem possibilidade de chuva. A presença de orvalho nas plantas ao amanhecer reflete que será um dia de tempo bom, caso as plantas não tenham orvalho, quer dizer que logo a chuva virá.

 

Da mesma forma, quando as roupas são colocadas no varal para secar e demoram, por mais que tenha sol, isso demonstra que tem muita umidade, caso contrário, se as roupas secarem rapidamente é porque tem pouca umidade e demora um pouco mais para chover.

 

Outra forma de saber se vai chover ou não e também está relacionada com a umidade, é através da fumaça do fogão a lenha. Se a fumaça sai pela chaminé para cima, o tempo ficará bom. Agora se a fumaça vai sentido ao chão, é porque tem umidade no ar que impede que a fumaça suba, então é sinal de chuva. Se temos dificuldade em acender o fogo também é sinal de chuva, pois a umidade impede que o ar circule e alimente o fogo.

 

Conforme a intensidade da umidade do ar o som se propaga de uma forma diferente, quando o tempo está para chuva, parece que o som é mais forte, parece que está mais próximo. Cerca de 5 km de nossa residência existe uma serraria que sinaliza três horários através de um alarme, quando o tempo está bom não ouvimos o som do alarme, mas quando a chuva está chegando escutamos nitidamente a sirene às 6:30, 12:00 e 17:30 horas.

 

Quando os aviões a jato cortam o céu e deixam um rastro de fumaça, isso quer dizer que vai chover, pois tem umidade no ar. Às vezes estes aviões passam e não aparece nada, então significa que não terá chuva nos próximos dias.

 

Nos astros também aparecem sinais, como círculo ao redor do sol, que significa que dará uma estiagem forte nos próximos meses. Podem aparecer manchas luminosas em algumas nuvens próximas do sol, até parecem um “segundo sol”, também é sinal de falta de chuva.

 

Na lua também são observados círculos, quando o círculo está próximo (figura 6) quer dizer que a chuva está longe, e quando o círculo está longe da lua é sinal que a chuva está próxima. Fases da lua também interferem na ocorrência das chuvas, a sabedoria popular diz que se troveja na lua nova de setembro vai chover bem na primavera e verão. Se começar a chover minguante é mais difícil de parar, é sinal de chuvarada, pode dar até enchente. E as geadas são mais forte e as plantas morrem mais se for na fase da lua nova.

 


Figura 6– Círculo próximo da lua.
Fonte: arquivo pessoal de Ana Claudia Rauber.

 

Folhes e Donald (2007) e Bastos e Fuentes (2015), estudaram como as comunidades rurais do Ceará e da Bahia, respectivamente, constaram que os “profetas das chuvas” estão muito presentes no sertão nordestino, no entanto, lembram que povos em outras regiões também apresentam estas experiências e sabedorias de interpretar o clima.

 

Percebemos muitas semelhanças das interpretações da fauna, flora, astros, do sertanejo nordestino, com as nossas aqui no sul. Como o comportamento das galinhas, a vocalização das rãs e aves, o orvalho, a lua, o sol, posição do ninho do joão-de-barro, florescimento e frutificação das plantas, relâmpago em setembro, direção da fumaça (ventos).

 

Esses conhecimentos são de importância cultural e podem ser de grande valia para a construção das estratégias de desenvolvimento agrário sustentável (FOLHES; DONALD, 2007). Tendo em vista que o modelo de agricultura convencional, industrial, ou seja, o agronegócio, desconsidera todos esses elementos da natureza e da cultura, e mais esse modelo de agricultura destrói esses elementos quando se expulsa os povos do campo e se implanta a monocultura e se despeja veneno impossibilitando a ocorrência das mais diversas formas de vida.

 

Diante das mudanças climáticas tudo está perdido?

 

Durante milhares de anos diversas populações, comunidades e povos construíram formas de convivências mais harmônicas com o local onde viviam e vivem, podemos dizer que estes modos de vida são sustentáveis e que pouco impactam na natureza e nos bens naturais.

 

Podemos afirmar que os povos do campo, conseguiram desenvolver práticas agropecuárias que ao mesmo tempo que produzem alimentos e outros bens para o sustento, além da geração de renda, e garantindo a conservação das águas, das florestas, do solo, através das técnicas de produção agroecológica com insumos locais, com cobertura do solo através de adubação verde, com os sistemas de policultivos, quintais, sistemas agroflorestais. Neste contexto, todas aquelas informações sobre entender o clima e fazem sentido, pois há uma intensa interação com a natureza e as formas de vida.

 

No entanto, há uma outra forma de “desenvolvimento”, de “progresso” que desconsidera todas essas interações, estratégias e conhecimentos, e mais, trata esses modos de vida como “primitivos” e “atrasados” e inviabiliza a manutenção e a perpetuação dos mesmos.

 

No campo o avanço do capitalismo ocorre na forma da agricultura industrial, há uma grande ofensiva do modelo de agricultura conservadora que se intensifica no Brasil com o advento da Revolução Verde nos anos 70 em diante, e que provocou um intenso impacto nas comunidades rurais, fazendo com que muitos fossem expulsos para as periferias das cidades. Além do forte impacto causado pelo desmatamento e a implantação das monoculturas, e todos desequilíbrios resultantes do uso de agrotóxicos.

 

Assim, aqueles que resistiram arduamente a este processo, hoje apresentam muitas dificuldades quanto a produção, consideramos que estes espaços camponeses são verdadeiras ilhas de biodiversidade e agrobiodiversidade rodeadas por um mar de soja. Por mais que nossos espaços sejam biodiversos, são pequenos, pois historicamente não tivemos acesso à terra num país com dimensões continentais.

 

Lutamos para construir espaços equilibrados através da biodiversidade funcional, porém ao nosso redor está desequilibrado, e os insetos acabando chegando até nossas plantações, os venenos também chegam através da deriva, os animais também querem um alimento diverso e saudável, então as gralhas (figura 7), maritacas e tirivinhas comem os milhos crioulos, a cotia adora se alimentar de amendoim e mandioca, as formigas, essas nem se fala, quase todas as plantas em algum momento são atacadas pelas cortadeiras.

 


Figura 7– Milhos crioulos depredados pelas gralhas.
Fonte: arquivo pessoal de Ana Claudia Rauber.

 

Além disso, no caso do Brasil, o avanço da agricultura e da pecuária sobre os biomas tem provocado a derrubada e queimada das florestas, isso impacta diretamente na liberação de gás carbônico para a atmosfera, contribuindo com o aquecimento global. A devastação da floresta amazônica provoca a savanização do próprio bioma, e interfere na ocorrências das chuvas no sul e sudeste brasileiro, na Argentina, Uruguai e Paraguai. A evapotranspiração da floresta atrai também a umidade do oceano atlântico formando os rios aéreos que são conduzidos para a América do Sul através da Cordilheira do Andes (MELGAREJO, 2019).

 

Temos percebido que estas mudanças estão cada vez mais presentes em nossa vida, implicando diretamente em nossa produção e em nossa forma de manutenção da vida. Recentemente, em 2020 tivemos no Paraná a maior estiagem das últimas décadas, com chuvas abaixo da média entre os meses de fevereiro e meados de maio. Depois em julho tivemos os efeitos de um ciclone bomba com ventania e forte chuvas. Em setembro e outubro nosso céu se escureceu com a fumaça das queimadas a Amazônia e principalmente do Pantanal. Em janeiro deste ano tivemos mais uma vez fortes chuvas, foram mais de 600 milímetros, superando a média histórica do mês, resultando em perdas irreversíveis na produção de hortaliças e feijão (figura 8). E agora, mês de fevereiro, já está faltando chuva novamente, justamente no período em que o arroz está cacheando.

 

 

Figura 8 – Perdas de mais de 50% do feijão pelo excesso de chuva em janeiro de 2021.
Fonte: arquivo pessoal de Ana Claudia Rauber.

 

Portanto, os avanços deste modelo destruidor, explorador e de concentração de riqueza sobre nossos territórios e modos de vida está contribuindo com as mudanças climáticas, aliados a outras atividades industriais que são poluentes e contaminantes.

 

O clima já não é mais o mesmo, já não tem mais regularidade, não se tem mais as certezas das estações, de quando fará frio ou calor, da frequência das chuvas, às vezes até os sinais da natureza já não são mais os mesmos, pois tudo está mudando, tudo está desequilibrado.

 

E por fim, para ainda (não) concluir…

 

Seria o começo do fim da humanidade? Diante da crise sistêmica do capitalismo, que reúne as várias crises ambiental, social, econômica e atualmente a crise sanitária, poderíamos dizer que seria o começo do fim do capitalismo. No entanto, o sistema se reinventa, se “colore de verde”, no caso do agronegócio, se reconfigura tentando ser “sustentável”. Portanto, a exploração do humano e da natureza, a acumulação de riquezas e aumento das desigualdades sociais continuam e se intensificam, refletindo no extermínio da parte mais pobre da população e na degradação ambiental.

 

Diante de tudo isso, nós insistimos esperançosamente que ainda é possível transformar o rumo da nossa história, através de um outro sistema que proporcione uma vida mais justa, digna e igualitária, que podemos construir um bem viver em harmonia com todas as formas de vida.

 

E mais, reafirmamos, a resposta está nos povos, nos diversos modos de viver e conviver, nas coevoluções, a resposta está em nosso olhar, em nossa sabedoria ancestral, em nossa sensibilidade…

 

Bibliografia

 

BASTOS, S.; FUENTES, M. C. O uso da etnoclimatologia para a previsibilidade de chuvas no município de Retirolândia-BA. Revista do CERES. Volume 1, Número 2, 2015.

 

FOLHES, M. T.; DONALD N. Previsões tradicionais de tempo e clima no Ceará: o conhecimento popular à serviço da ciência. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 19(2): 19-31, dez. 2007.

 

IPARDES. Diagnóstico socioeconômico do Território Cantuquiriguaçu. Instituto Paranaense de DesenvolvimentoEconômico e Social. – Curitiba: 2007.

 

MELGAREJO, L. Los incendios en Brasil van más allá de los bosques, América del Sur corre peligro. In: PALAU, M. (coord.) Con la soja al cuello 2019: informe sobre Agronegocios en Paraguay. Asunción, BASE-IS, Noviembre, 2019, p. 66-69.

 

STERMANN, J. Filosofía andina: Sabiduría indígena para un mundo nuevo. 2 ed. – La Paz: ISEAT, 2006.