No dia 28 de outubro último, o papa Francisco recebeu no Vaticano, para um encontro inédito no seio da Igreja romana, representantes de movimentos sociais populares de todas as partes do planeta. Pessoas que lutam por moradia, trabalho digno, melhores condições de emprego e renda, além de representantes do campesinato mundial estiveram presentes.
Do Brasil, entre outros, estava participou o secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Leonardo Steiner; o membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile e a coordenadora nacional do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e da Via Campesina, Rosângela Piovizani Cordeiro.
“Este encontro nos dará mais condições de entrar em espaços que desde um certo período vêm se afastando da luta camponesa e da luta de enfrentamento ao capital. Eu penso que teremos mais liberdade em dialogar nas paróquias, nas dioceses e dizer: ‘Olha, o papa está aberto, porque vocês não?’”, questionou Rosângela Piovizani em entrevista inédita ao CONIC. Confira!
1) Na história do papado, esta é a primeira vez que um papa se reúne com representantes de movimentos sociais populares do mundo inteiro. Como avalia esta iniciativa?
Rosângela: Essa iniciativa é uma das coisas na vida da Igreja e na vida dos movimentos sociais das mais importantes que já aconteceu. Foi uma experiência inédita e frutífera, que nos dá muito mais força para continuar na luta. E sabemos que tal encontro é uma construção que não é de hoje, até pelo longo envolvimento do papa Francisco com os movimentos sociais populares na Argentina. Logo, este não foi um evento que o papa tirou da cabeça, afinal, ele já tinha uma vida a serviço destas causas e sempre lutou ao lado dos pobres, engajado no enfrentamento à miséria e à pobreza, tudo isso com diálogo permanente com os movimentos da Argentina.
2) Qual foi a importância do MMC estar representado lá?
Rosângela: O MMC é um movimento feminista, mas a nossa realidade é o campo. Somos mulheres da roça, e um dos debates principais que perpassa a nossa gente é a questão da dignidade, do respeito, do reconhecimento do trabalho e da produção das mulheres. Temos muita clareza do papel da mulher camponesa nas unidades de produção, pois o cuidado, especialmente com as plantas, com a biodiversidade, com a água, com estes bens da natureza, isso está muito ligado às tarefas das mulheres no campo. Logo, não tem como fazer um debate desta dimensão se um movimento específico de mulheres do campo não estivesse presente.
Também teve outros movimentos semelhantes, de outros países, que foram. Mas pra nós, do MMC, foi importante porque fomos mostrar o olhar das mulheres em sua realidade: seja no enfrentamento ao agronegócio, aos venenos, à criminalização das mulheres… Isso tudo a gente pautou, já que não podemos deixar de dizer que é preciso que a Igreja fique mais atenta em processos como, por exemplo, os de criminalização dos movimentos sociais e das mulheres.
3) De que modo a experiência poderá aperfeiçoar a atuação do MMC no Brasil?
Rosângela: Eu não diria aperfeiçoar, eu diria que este encontro nos dará mais condições de entrar em espaços que, desde um certo período, vêm se afastando da luta camponesa e do enfrentamento ao capital. Eu penso que teremos mais liberdade em dialogar nas paróquias, nas dioceses e dizer: “Olha, o papa está aberto, porque vocês não?” Acho que a Igreja no Brasil e no mundo precisa estar mais aberta às questões conjunturais, porque se o próprio Vaticano abriu, então está na hora de as Igrejas também se abrirem. Enfim, o encontro ajudará muito a recolocarmos a pauta da luta social e da luta popular no seio da Igreja. Isso pra gente é um ganho muito importante, até porque, agora nós temos um documento, uma fala do chefe da Igreja Católica. Teoricamente, as paróquias também deverão se abrir a este debate de diálogo com os movimentos que lutam pela terra, pela liberdade.
4) E o que você levou de experiência no MMC e que, na sua visão, poderá servir de exemplo ou modelo para outros coletivos do tipo?
Rosângela: Levamos nada mais do que a nossa vida cotidiana e a nossa luta. Levamos os nossos sonhos de liberdade; os sonhos da nossa terra; os sonhos dos nossos direitos garantidos; a nossa luta por vida digna; a nossa luta em defesa do meio ambiente; da alimentação saudável. Nós levamos isto! Também levamos a nossa indignação da ofensiva do capital, do agronegócio que impacta diretamente a vida do povo e das mulheres ao levar veneno, concentração de terra e de renda, poluindo os rios e, assim, comprometendo inclusive a soberania alimentar do nosso país. Isso pra não falar da desterritotialização de muitas comunidades tradicionais. E ao lado de tudo isso, pedimos apoio às nossas causas que, na minha avaliação, são mais do que justas.
5) A grande imprensa no Brasil repercutiu pouco este importante encontro. Por outro lado, a blogosfera e a mídia alternativa em geral fez seu papel e deu bastante destaque. Por quê?
Rosângela: A mídia burguesa está a serviço de um projeto que não é o nosso projeto. Ela está a serviço de um projeto neoliberal, do capital, das grandes empresas, e o que nós fazemos no Brasil e no mundo é debater, é construir um outro projeto de sociedade. Então, quando a Igreja deixa de ser, por algum momento, aliada do Estado e dialoga com os movimentos sociais, isso significa que não está defendendo os interesses da burguesia e do capital. Logo, é lógico que isso não é interessante noticiar. A grande mídia no Brasil e no mundo não pautou praticamente nada do que aconteceu. Mas o nosso povo, a nossa imprensa, a nossa comunicação alternativa, estes sim, deram vazão a isto, pois entenderam que o fato em si já é uma grande vitória para todos os que querem construir uma sociedade diferente.
6) Num momento em que alguns setores da mídia tradicional vêm fazendo críticas ao chamado “bolivarianismo”, um fato que chamou atenção foi a presença do presidente boliviano Evo Morales. Isto, em sua opinião, quer dizer alguma coisa?
Rosângela: A ida do Evo Morales não foi um convite ao presidente da Bolívia, mas um convite ao dirigente, ao militante das causas do campo, dos indígenas, dos povos que ele é. A sua vida sempre foi comprometida com a militância ao lado dos camponeses, dos indígenas, dos movimentos populares. O Evo foi convidado pela via campesina mundial pra que pudesse dar uma palestra sobre as cosmovisões de mundo e mostrar também o que significa o projeto bem viver, enfim, trabalhar essa dimensão. Lógico que lá, na presença do papa, no Vaticano, ele também era o representante de uma república, de um país, o que chamou muita atenção.
Por outro lado, o fato de Evo ter participado foi importante porque, de certa forma, ele fura um bloqueio que vem sendo feito muito pesadamente contra o bolivarianismo, seja na Venezuela, na Bolívia, em parte porque a Igreja tem feito resistência a estes governos populares. De certo modo, o fato dele estar ali sinalizou para que a própria Igreja na Bolívia passe a respeitar um pouco mais o seu líder, que é um dirigente e é um lutador da classe trabalhadora.
7) O que este encontro com o papa pode trazer de lição para líderes religiosos que, tanto quanto possível, se colocam ao lado do poder financeiro, grandes grupos empresariais, etc.?
Rosângela: Tem muitas coisas que não dá mais pra não enxergar. Eu acho que a maneira com que a gente está utilizando os bens da natureza é insustentável. As grandes catástrofes, o consumismo exacerbado, o envenenamento da água, da terra, leva a um caos não só no Brasil, mas em todo o planeta. É necessário repensar tudo. E eu acho que foi aí que o papa, preocupado com a fome e a miséria no mundo, chama-nos a gente pra conversar.
Lembrando que há bem pouco tempo o próprio Vaticano soltou um documento questionando a questão dos transgênicos. Então, acho que existe uma preocupação hoje, da Igreja, com a forma de produção, com a forma com que estamos tratando a mãe natureza, a terra e os nossos bens naturais. Bem recentemente, a CNBB emitiu um documento sobre a questão agrária que é muito atual sobre a questão da reforma agrária, da questão da demarcação de terras indígenas e quilombolas e da produção de alimentos. Nós temos um bilhão de pessoas passando fome no mundo e a Igreja tem a sua parcela de responsabilidade. A boa notícia é que o papa já se comprometeu que, ano que vem, vai convocar um sínodo para discutir agroecologia.
Este modelo calcado no veneno, no transgênico e no grande maquinário está fadado a promover muito mais a morte do que a vida, e a Igreja preza pela vida! Penso que os sinais da Igreja estão vindo de um bom tempo. A CNBB fez este documento, o papa recebeu os movimentos populares e, por fim, vem este comprometimento em fazer um sínodo sobre agroecologia pra discutir, de fato, que tipo de agricultura a gente quer defender.
Fonte: Conic