“Esse ufanismo de que o Brasil é o celeiro do mundo é uma falácia” - MMC - Movimento de Mulheres Camponesas

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“Esse ufanismo de que o Brasil é o celeiro do mundo é uma falácia”

Não é novidade que o Brasil é um dos maiores exportadores agrícolas do mundo. De acordo com o Ministério da Agricultura, somos o país que mais produz e exporta café, açúcar, etanol e suco de laranja no planeta.

Por Anna Beatriz Anjos
Da Revista Fórum

Não é novidade que o Brasil é um dos maiores exportadores agrícolas do mundo. De acordo com o Ministério da Agricultura, somos o país que mais produz e exporta café, açúcar, etanol e suco de laranja no planeta.

Esse cenário gera a ideia de que nossa alimentação vai muito bem, obrigada. Mas isso não é o que pensa Sérgio Sauer, sociólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB). Para ele, embora produzamos e comercializemos alimentos em larga escala, o problema não está resolvido. “Essa discussão entre produção de alimentos e insegurança alimentar não passa só pela produção em si, mas pelo que se produz, como se produz e para quem se produz. Pensar em produção de alimento, portanto, não de grãos, significa pensar na produção da diversidade”, afirma.

Sauer, que também é relator de Direito Humano à Terra, ao Território e à Alimentação da Plataforma Dhesca Brasil, explica que a lógica do agronegócio dificulta a manutenção dessa diversidade. “O mercado, como regulador, vai sempre pensar pelo lado do que dá mais dinheiro”, pontua. “Os proprietários [das terras] não estão preocupados em diminuir metade da fazenda e cultivar alguma outra coisa.”

Em entrevista à Fórum, durante o III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), o professor falou, entre outros assuntos, sobre a questão da reforma agrária no Brasil, que, para ele, “saiu do foco” durante o governo de Dilma Rousseff. Confira a seguir:

Segundo Sérigio Sauer, a perseguição a lideranças de movimentos sociais ligados à terra e ao território é uma das mais recorrentes violações de direito humano que testemunhou como relator da plataforma Dhesca

Como relator de Direito Humano à Terra, ao Território e à Alimentação da Plataforma Dhesca, quais são as maiores violações de direitos humanos que tem constatado nos últimos anos?

Quando comecei na função, há 4 anos, as maiores violações, os ataques mais sistemáticos estavam muito ligados aos movimentos sociais agrários, como o MST [Movimento dos Trabalhadores Sem Terra] e todos os outros. Se mantêm ainda muitas dessas violações, algumas graves, como assassinatos de lideranças etc, mas mudou um pouco o enfoque. Olhando o Congresso, a bancada ruralista, a própria mídia, vemos que, agora, as maiores violações são aos direitos das comunidades quilombolas, indígenas. Claramente o foco está mais nas lutas de resistência dos territórios.

Do ponto de vista do tipo de violações, se mantêm muito fortemente as perseguições e ameaças, mas ganharam muita força também as violações que a gente chama de institucionais. O fato de o Estado ou governo não implementar ou não garantir certos direitos, como por exemplo, o direito ao território, gera uma série de outras violações, especificamente em relação aos povos indígenas. Acompanhei bastante, nos últimos dois anos, a situação lá no Mato Grosso do Sul, dos Guaranis e dos Kaiowás, e a não garantia do direito territorial gera uma série de outras violências que vão do direito à alimentação, que passa por problemas de saúde mental, passa por uma ampliação do alcoolismo, violência doméstica. Eles relatam isso.

Como a questão da reforma agrária se relaciona às crises ambiental e alimentar? 

Como é que a noção de questão agrária surge na literatura? Primeiro com [Karl] Marx e depois, principalmente, com Kautsky [Karl Kautsky, teórico político alemão], que escreve o livro “A questão agrária”, cuja ideia central é: a terra é um impedimento ao desenvolvimento do capital, e aí a reforma agrária seria um mecanismo capitalista de diminuir ou amenizar esse bloqueio. Porque o centro da acumulação capitalista é o trabalho – sua exploração – e o capital. E isso marcou a esquerda, os grupos das teorias críticas, durante uns cem anos.

Mais recentemente, vários teóricos, inclusive alguns de esquerda, dizem que a terra não é mais um impedimento para o desenvolvimento do capital, porque há uma aliança entre o capital e terra, através do agronegócio. Então, se adquire a terra e, com os incentivos governamentais, como créditos etc, em vez de ela ser um impedimento – imobilizar o capital, como a gente chamaria na linguagem mais simples -, ele se dinamiza, porque a terra seria um ativo financeiro. Nessa perspectiva, a reforma agrária não teria mais uma função nem econômica, nem social, ou talvez só social, no sentido do combate à pobreza.

O que estou tentando dizer é que, primeiro, a gente precisa pensar a terra não só como ativo financeiro, não só como meio de produção, mas como base, inclusive material, para uma série de outros elementos, como por exemplo, todo o debate em torno do meio ambiente. Tendemos mentalmente a excluir a terra do meio ambiente, porque ela está ligada à produção.

Mas, mesmo pegando pela dimensão produtiva, você tem um link direto com o tema dos problemas ambientais, portanto, da crise. Por exemplo: a agricultura é uma das principais atividades humanas emissoras de gases do efeito estufa. Isso faz com que a terra volte a ter uma atualidade e que surja um discussão em torno do tema.

Como é que ela está sendo usada, como é que está sendo preservada – ou não? Com essa centralidade, retorna também o debate sobre a questão agrária. Eu inclusive comecei a utilizar a noção de função sócio-ambiental da terra, não apenas social, porque a dimensão ambiental tem que ser incorporada nessa discussão.

Mesmo que a gente não pegasse pelo tema ambiental, vamos abordar a necessidade de produzir alimentos, de alimentar a população mundial, independente se é problema só de produção, se é problema de produção e distribuição etc. Essa necessidade de produção, também traz de volta a centralidade da terra – como se produz alimento sem terra?. Claro, não é o único fator, obviamente, tem as sementes, tem o trabalho, tem os investimentos, mas a gente tende a tirar da equação a terra, e aí eu digo, se a gente realmente pensa de uma forma mais abrangente, ela volta a ser, no mínimo, parte da equação.

O Brasil importa alguns alimentos básicos, como feijão, trigo e leite. Na sua opinião, é necessário que se aumente a nossa produção agrícola, por meio de mais investimentos no agronegócio, para que sejamos autossuficientes na questão da alimentação? O que precisa ser feito para que o país pare de importar?

Esse ufanismo de que o Brasil é o celeiro do mundo é uma falácia. Claro, nós produzimos muito, e nesse sentido o Brasil tem, entre aspas, uma vocação agrícola. Mas o que vem acontecendo no país já nos últimos 30 anos é que não se produz alimento, se produz grãos. Por que que faço essa distinção entre alimentos e grãos?

Porque, por exemplo, não consumimos só soja. Pensar em alimentação é pensar na diversidade, mesmo que seja no modelo da revolução verde. Tem todo um discurso nessa história, de que precisamos produzir mais alimentos, nos aperfeiçoar tecnologicamente, investir em mais adubo, mais sementes selecionadas, mais sementes transgênicas. O discurso de defesa da mudança do Código Florestal, por exemplo, era de que precisamos de mais terra para produzir alimentos e alimentar o mundo. Mas não é bem assim.

A bancada ruralista e o agronegócio dizem que estão produzindo, exportando, gerando riqueza, mas estamos produzindo dois ou três produtos. O Brasil, apesar de exportar uma parte significativa do que produz, não produz o suficiente para a sua própria população. Essa discussão entre produção de alimentos e insegurança alimentar não passa só pela produção em si, mas pelo que se produz, como se produz e para quem se produz. Pensar em produção de alimento, portanto não de grãos, significa pensar na produção da diversidade, e não necessariamente significa aumentar a quantidade de produção.

No caso do feijão, o Brasil era produtor autossuficiente – inclusive, nós exportávamos. Mas a lógica passa pelo preço, e no mercado internacional, a demanda pela soja, e também os seus preços, estão mais elevados. Portanto, estão substituindo os cultivos. Por exemplo, o pequeno agricultor do centro-oeste, onde se produzia feijão, não consegue mais cultivar o alimento, porque a soja levou para a região uma lagarta branca, que não faz mal a ela, mas ataca o feijão.

A questão chave não é que precisamos de mais terras. Quando esse argumento é utilizado pelo setor patronal, ele sempre está pensado na floresta, nos biomas, nas áreas de preservação, quando, na verdade, o sistema do agronegócio já incorporou uma área tão grande, que a gente poderia, só em termos produtivistas, dobrar a produção ou mais sem avançar sobre o cerrado, sobre a Mata Atlântica, sobre a Amazônia.

Como é possível aumentar a produção sem precisar de mais terras? 

Uma das questões chaves seria a reforma agrária. Estamos falando de imensas fazendas, de 70, 100 mil hectares de terra, que serão utilizados para aquela atividade que dá mais dinheiro. Os proprietários não estão preocupados em diminuir metade da fazenda e cultivar alguma outra coisa. As questões da redistribuição da terra  e, obviamente, de repensar o modelo são chave. Agora, para isso, você precisa de políticas públicas, mas o mercado, como regulador, vai sempre pensar pelo lado do que dá mais dinheiro.

Por exemplo, tinha uma política ambientalista que defendia a expansão da cana de açúcar para áreas degradadas. Mas é mais caro você recuperar uma pastagem degradada, em termos de correção do solo, do que derrubar uma mata nova e aproveitar a fertilidade natural do solo. Então, você precisa criar mecanismos legais, mecanismos restritivos, mas também de incentivos, no sentido positivo, para que haja vontade de se fazer isso.

O Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar],  principal política de apoio à agricultura familiar no Brasil, financia o clássico. Se o agricultor familiar chegar no Banco do Brasil e pedir um financiamento para produção orgânica, ele não consegue. Mas se ele pedir para plantações de soja, milho, consegue o recurso. Precisamos repensar as próprias políticas para a agricultura familiar, que têm as suas vantagens – não estou simplesmente fazendo “terra arrasada” das políticas públicas. É preciso repensar um pouco essa lógica, se a gente quer realmente caminhar na direção da sustentabilidade.

A agricultura familiar e a agroecologia podem ser o modelo agrícola do Brasil no futuro? Elas dariam conta tanto das demandas internas e externas?

Esse é um debate que tem uma dimensão política muito forte. Eu diria que esse é o caminho, mas isso é uma posição política, não é consensual. Sou da linha de que a agricultura familiar, justamente por ter acesso a menos recursos produtivos, tende a aproveitar melhor esses recursos. Se isso é verdade, então o resultado é sempre mais produtivo, mesmo que seja menos produção. Os defensores do agronegócio vão dizer o contrário, que seria necessário continuar exportando para equilibrar a balança comercial.

Do ponto de vista da agroecologia, um dos grandes desafios que está colocado é como a gente amplia, massifica experiências locais, faz com que ganhem dimensão regional, nacional, no sentido, inclusive, de produzir em quantidade? Acho que são desafios, mas eu diria que elas são viáveis e que seriam um caminho mais seguro na direção de um modelo de produção agropecuária mais sustentável a médio e longo prazo.

Durante o III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), praticamente todos os movimentos sociais ligados à terra reivindicaram que o governo de Dilma Rousseff recuou muito em relação à reforma agrária. Você concorda? Por que isso ocorreu?

Sou bastante crítico ao governo Dilma. Ele reproduz o que foram os governos do Fernando Henrique e do Lula: começa com um fôlego maior, especialmente em algumas áreas que nós defendemos, e vai perdendo esse fôlego. Muito claramente, toda a temática da reforma agrária, do fortalecimento da agricultura familiar, da agroecologia e produção sustentável saiu do foco, por uma combinação de fatores. Um deles foi, inclusive, uma certa perda da capacidade de mobilização dos movimentos sociais do campo.

O ENA ainda reúne 2 mil pessoas, o Congresso do MST reuniu 5, 7 mil, mas transformar esses encontros em processos de mobilização e pressão é algo que vem caindo sistematicamente nesses últimos anos. Além disso, é uma opção política que já fizeram os governos anteriores – que o Lula fortaleceu e que a Dilma continuou – de apostar no agronegócio. Ele nunca teve uma pujança tão grande como agora, porque tem recursos, incentivos, isenção de impostos para exportação etc. Isso tudo associado a uma demanda internacional dos produtos que eles produzem, dessas commodities agrícolas e não agrícolas.

Ao mesmo tempo, os desafios se tornam mais complexos. Paralelo ao problema do não avanço da reforma agrária, você tem os assentamentos que já existem e precisam criar mecanismos de sobrevivência. Alguns estão endividados, outros estão cercados por várias experiências de agroindústria, e isso toma a energia das lideranças. Então, se tem um caldo bastante complexo que envolve um aumento das demandas internas, uma dificuldade de mobilização social e uma opção de governo, que é um governo amigo, mas que não implementa as bandeiras desses movimentos.

Qual o balanço que você faz da atuação do Incra (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) nos últimos anos? 

O que acabou acontecendo é que o Incra e o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário] vinham num processo de isolamento, de perda de espaço político no governo, e eles foram mudando institucionalmente, fazendo opções políticas justamente no sentido de buscar nichos que não eram os clássicos, como, por exemplo, ampliar os assentamentos, lutar por recursos para novas áreas. E foram fazendo opções de implementar políticas que são menos conflituosas, aí perderam sua característica histórica.

É impressionante, você não vê ninguém criticar o Incra, não tem embates. Exemplo mais claro: em vez de fazer novos assentamentos, [eles dizem que] nós precisamos consolidar aqueles que já existem, colocando os técnicos para criar políticas de assistência técnica. Elas são importantes também, mas se direciona sua pouca força para isso.

Outro exemplo claro foi quando, já no final no governo Lula – e isso depois foi fortalecido no Governo Dilma -, se fez a opção pela regularização fundiária através do Terra Legal. Você tira uma quantidade imensa de funcionários do Incra, que passaram a tentar implementar um programa que é importante, mas, de novo, tira a sua força.

Se vê claramente que essas opções políticas e institucionais tentaram ser eficientes em implementar algumas políticas que não aquelas estruturantes, e isso fez com que o órgão, e também o Ministério do Desenvolvimento Agrário, fosse perdendo sua capacidade, inclusive, de se colocar internamente no governo, de dizer “espera aí, tem também o nosso Ministério, precisamos de mais recursos porque temos X assentados.” Chegaram a assumir o discurso de que não tem mais luta pela terra, de que não tem mais acampados, e, portanto, não precisa fazer novos assentamentos.

Mudando um pouco de assunto e falando do reconhecimento dos territórios dos povos tradicionais: quais são os maiores entraves para esse processo? Concorda com a reivindicação dessas comunidades, de que é um processo extremamente autoritário?

Acho que o primeiro grande o problema – e isso o setor patronal e o setor do governo entenderam muito bem – é que quando você reconhece um território indígena, tira esse território do mercado de terras ou de futuras possibilidades de investimento ali. É um embate por reserva de valor.

Por isso, há uma resistência e pressão muito forte desses setores de não reconhecer mais nada. Associado a isso, o governo Dilma, especialmente, assumindo um discurso muito burocrático e pragmático, também defende que primeiro é preciso resolver o problema daqueles territórios já conquistados, porque não tem saúde, não tem educação. Isso é verdade, mas as coisas não são descoladas, você não consegue avançar sobre o tema da educação no campo se você não tem famílias sendo assentadas.

Eu diria que, no que se refere aos territórios de povos e de comunidades tradicionais, a chave acho está nessas duas coisas: primeiro, uma pressão para que não se reconheça porque, futuramente, poderão ser terras pra investimento, para reversa de valor etc; segundo, um governo que não vê essas políticas como capazes de mudar a realidade brasileira.

Um terceiro elemento é uma opção do governo, de que é necessário criar infraestrutura, portanto, direcionar investimentos governamentais para desenvolver o Brasil, para fazer crescer – nessa esteira vem o PAC. E aí o governo é realmente autoritário em todos os sentidos.

Por exemplo: você vai construir uma estrada, mas tem lá 100 famílias. Negociar com essas 100 famílias dá trabalho, e o Estado brasileiro tem uma história de autoritarismo, então é muito mais fácil dizer: “vai passar por aqui, você assina o decreto e pronto, depois a gente resolve os problemas”. A nossa prática estatal extremamente autoritária se revela nessas horas.

Historicamente, também se utilizou o discurso da necessidade de preservação. Lembro muito bem quando o governo Fernando Henrique institui no Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente] que o assentamento de reforma agrária, para ser legalizado, precisava do licenciamento ambiental. Tinha toda uma argumentação da sustentabilidade, de preservar o meio ambiente. Também essa narrativa funciona muito bem para fazer o bloqueio, e isso é muito forte nos últimos anos.

A criminalização [das comunidades tradicionais] via fiscalização é muito forte, seja pela questão ambiental, seja pela questão do uso dos recursos públicos, e isso tem dificultado muito a mobilização dos movimentos, porque qualquer acesso a recurso público a que o pessoal tem direito, o Estado autoritariamente faz aquele pente fino. Não é que a gente seja contra a fiscalização, mas você usa dois pesos e duas medidas, você aplica a lei de uma forma muito mais dura, muito mais rígida, para um dos lados.

Há uma forma de conciliar a preservação ambiental, com a criação de unidades de conservação, ao respeito ao direito das comunidades tradicionais? Parece que são duas coisas que conflitam, mas elas realmente são antagônicas?

O Brasil é um bom exemplo de uma excelente legislação. Por que quando você fala de unidades de conservação, o sistema nacional tem umas 10 ou mais modalidades, que vão das mais rígidas, como as unidades de conservação integral, às reservas extrativistas, às reservas de desenvolvimento sustentável, que são figuras jurídicas e formas de ocupação da terra que pressupõem justamente essa relação entre convívio humano e preservação. Então, do ponto de vista legal, a gente teria os mecanismos, mas, na prática, as coisas são mais complexas.