Cinco substâncias encontradas na água estão banidas em países da União Europeia, além do Canadá e da Austrália.
Por Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida
As águas que abastecem comunidades quilombolas no município de Poconé (cerca de 100 km de Cuiabá), na Planície Pantaneira de Mato Grosso, estão contaminadas por oito tipos de agrotóxicos. Este é o resultado alarmante de uma pesquisa realizada pela ONG Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e o Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (NEAST), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
O estudo analisou a presença de agrotóxicos em rios, poços artesianos, tanques de piscicultura, água da chuva e reservatórios que abastecem as famílias das comunidades Jejum e Chumbo, localizadas em Poconé – município com o maior número de comunidades quilombolas do estado. A pesquisa foi elaborada entre maio e junho deste ano, e divulgada no dia 22 de outubro.
Dos oito agrotóxicos identificados, cinco estão banidos em países da União Europeia, além do Canadá e da Austrália, por apresentarem risco à saúde da população e ao meio ambiente. Entre os agrotóxicos identificados nas amostras de águas estavam: Atrazina, Picloram, 2,4D, Fipronil, Clorimurom-etílico, Tebuconazol, Clomazone e imidacloprido.
Os resultados das análises de água demonstram como o aumento da utilização de agrotóxicos na região pantaneira tem exposto comunidades quilombolas e tradicionais, conforme afirma Franciléia Paula de Castro, engenheira agrônoma e mestre em Saúde Pública, educadora da Fase em Mato Grosso e integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
“Isso pode estar associado ao avanço da fronteira agrícola da soja no bioma. As comunidades estão ilhadas em meio a fazendas de soja e pastagem, e sofrem com a exposição ao veneno”, avalia a pesquisadora, quilombola da região pantaneira do estado.
Franciléia Paula de Castro, durante o evento de lançamento da pesquisa, no dia 22 de outubro, no Centro Comunitário do Distrito de Nossa Senhora Aparecida do Chumbo, em Poconé / Foto: MPT-MT
O relatório técnico com resultados das análises foi encaminhado ao Fórum de Combate aos impactos dos agrotóxicos em Mato Grosso, que é coordenado pelo MPT, e ao Ministério Público Federal (MPF). Também foram informados o poder público do município de Poconé para que tome medidas cabíveis à proteção do meio ambiente e à saúde das populações quilombolas.
Peixes mortos no tanque de piscicultura / Foto: Arquivo
Câncer, depressão, má formação fetal
Para a professora Marcia Montanari, do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador da UFMT, organização parceira da pesquisa, a presença de agrotóxicos nas águas pode causar riscos à saúde, com intoxicações agudas manifestadas em 24 e 48 horas após o contato com os agrotóxicos. Os sinais são irritação na pele e nos olhos, coceiras, náuseas, vômitos, tontura e dores de cabeça, além de sintomas crônicos.
“Estudos já apontam que a exposição lenta e gradual a agrotóxicos, em contato com as células humanas, vai alterar a capacidade de replicação do DNA, causando mutação genética e ocasionando a formação de tumores e câncer. Além disso, afetam o sistema endócrino e podem causar diversas doenças como diabete, hipertireoidismo, doenças renais, dentre outras doenças relacionadas ao sistema hormonal. E também podem afetar o sistema reprodutivo, causando má formação fetal e contribuindo para o aborto”, garante a pesquisadora.
Entre os agrotóxicos identificados pelo estudo está o Imidacloprido, que afeta o sistema neurológico e pode provocar desorientação e se agravar para ansiedade e depressão.
Nuvem tóxica
A contaminação por agrotóxicos não é uma novidade para as comunidades quilombolas da região. Em março deste ano, cerca de 15 pessoas foram contaminadas por uma nuvem tóxica, durante a colheita de monocultivo de soja.
A máquina que realizava a colheita levantou uma poeira densa que provocou danos à saúde a adultos, crianças, idosos, e também a um bebê de 10 meses. Dores de cabeça, vermelhidão nos olhos, coceira na pele, espirros e garganta irritada foram os sintomas imediatos que evidenciaram a intoxicação aguda.
A situação deu indícios sobre o descumprimento do Decreto Estadual nº 1.651/2013, que proíbe a aplicação terrestre mecanizada de agrotóxicos e afins em áreas localizadas a, no mínimo, 90 metros de povoações, cidades, vilas, bairros, mananciais e nascentes.
Para Franciléia Paula, o episódio ocorrido em março, somado ao resultado da pesquisa divulgada agora em outubro revelam o não cumprimento da lei por parte dos produtores. “Se planta soja e pulveriza veneno praticamente em cima das casas e fontes de águas, e isso é ilegal, se configura ainda como um processo de violação de diretos humanos, considerando a água ser um bem comum e essencial a vida”.
A pesquisadora enfatiza os efeitos ainda mais graves pelas características ecossistêmicas do Pantanal. “O veneno utilizado pelo agronegócio é carregado por quilômetros e impactando todo o bioma e várias comunidades”.
O caso é investigado pelo MPT, e uma denúncia foi encaminhada ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Público Estadual (MPE) pela ONG Fase, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), as Associações das Comunidades Negras Rurais Jejum e Quilombo Ribeirão da Mutuca e a Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, com apoio da organização Terra de Direitos.
Contaminação em Mirassol D’Oeste
As pesquisas realizadas pela Fase também analisaram os agrotóxicos presentes na água usada pelos camponeses/as do Assentamento Roseli Nunes, no município de Mirassol D´Oeste. A comunidade é referência em produção agroecológica no estado, no entanto está rodeada pelo monocultivo de soja e cana-de-açúcar, produzidos com altas quantidades de agrotóxicos via terrestre e área. O estudo também está sendo desenvolvido na cidade de Cáceres em comunidades localizadas próxima a lavouras de soja e pastagens.
Michela Calaça: “O Pnae compra a comida da camponesa e dá de comer para família dela ao mesmo tempo”Por Carol Scorce, especial para O Joio e O Trigo
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Agricultura familiar e trabalho doméstico são ofícios que podem se misturar o todo tempo. Beneficiar a terra e limpar o quintal podem parecer a mesma coisa, mas não são. O bolo de fubá no forno, perfumando a casa toda, pode ir para o café da tarde da família, mas também para a escola do bairro. E para a mulher que bate a massa não representa a mesma coisa, ainda que um dos estudantes a comer esse bolo na escola seja o próprio filho da trabalhadora do campo.
Um é o cuidado com a família, trabalho reprodutivo, e ainda hoje feito massivamente de graça pelas mulheres do campo e da cidade. O outro, trabalho produtivo, que significa dinheiro no bolso.
Michela Calaça, agrônoma e integrante do Movimento de Mulheres do Campo (MMC), explica que, não faz tanto tempo, boa parte da venda da agricultura familiar feita para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) saía no nome do dito chefe de família, quase sempre um homem, responsável por receber todo o dinheiro.
A partir da organização e reivindicação das camponesas, as regras do programa mudaram, e toda a família passou a aparecer nos registros e pagamentos. O famoso salário suado pelo trabalho realizado. Um pedaço do bolo pode até ficar na mesa de casa, mas o que não fica vira renda para essa mulher.
Calaça conhece por dentro e de perto as formas como a “desigualdade se reproduz também dentro dos microcosmos, entre os trabalhadores do campo e na própria pobreza”. E explica que, assim como na cidade, ter voz em sindicatos, movimentos sociais e cooperativas é uma tarefa monumental para as mulheres na roça.
Além de agrônoma, nossa entrevistada é gestora, feminista e em setembro deste ano defendeu a tese de doutorado “Feminismo camponês popular: resistência e revolução”, pesquisa que realizou pela Universidade Federal de Campina Grande.
A universidade levou Michela Calaça para o movimento estudantil, de onde partiu para o movimento camponês e, dali, para o Movimento de Mulheres do Campo, o MMC. “Foi então que encontrei a reunião daquilo que acredito ser essencial para um país mais igual, que é a questão agrária e o feminismo, ambos a partir de uma perspectiva agroecológica”, conta.
Trabalhou na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) com a formação de camponesas, de forma que elas conseguissem vender para o Programa Nacional de Alimentos (PAA). Em 2015 e 2016, coordenou o programa de organização produtiva para mulheres rurais da diretoria de Políticas para as Mulheres, braço do Ministério do Desenvolvimento Agrário, extinto ainda em 2016 pelo governo de Michel Temer.
Em entrevista ao O Joio e O Trigo, Calaça conta sobre a importância de programas como o Pnae na vida das camponesas, e das camponesas para a vitalidade de programas como o Pnae. Afinal, em seus terrenos está o arroz para o almoço, mas, também, as folhas medicinais para as doenças. São mulheres que curam picadas e cultivam sementes.
Porém se das mãos das “mulheres da roça” vai o alimento também dos filhos da cidade, a cidade e os governos estão deixando as camponesas na mão. Desde o início da pandemia, em março de 2020, quando as escolas foram fechadas e a distribuição de alimentação escolar ficou prejudicada, as produtoras do campo perderam renda, capacidade de produção e ficaram muito mais expostas à violência.
Mesmo assim, elas estão lá, “capinando, construindo plantações diversas, convertendo plantações convencionais em agroecológicas, se juntando a outras mulheres para vender biscoitos e colocando nos refeitórios das escolas comida sem veneno e com alto valor nutricional. Porque diferente do comércio puro e simples, a preocupação com a terra é a preocupação com a família e vice-versa”, afirma a agrônoma.
Confira os principais trechos da entrevista a seguir.
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Joio — De que maneira o Programa Nacional de Aquisição de Alimentos, o Pnae, impacta a vida da agricultora?
Michela — Um programa como o Pnae impacta na vida da agricultora de duas formas: primeiro, enfrentando o problema importante da venda. Historicamente, o campesinato produz alimento – e produz alimento para a mesa do brasileiro –, diferente do agronegócio que produz para exportar. Mas, por muitas vezes não ter condições de escoar essa produção, ele não vendia. Ou vendia mal. Quem comprava essa produção antes [de programas como Pnae] eram atravessadores, que compravam por valores muito baixos e vendiam aos supermercados.
A partir do momento que temos um política pública que compra essa produção diretamente do agricultor e da agricultora familiar – porque no Pnae 30% têm que ser comprados direto da agricultura familiar –, de cara essa questão está sendo enfrentada. E por que isso é especialmente benéfico para as mulheres? Porque se a agricultura familiar, de modo geral, tem dificuldade de comercialização, as mulheres não têm nenhuma condição de venda.
Dentro das relações de poder no seio familiar, é comum a mulher na roça ser vista como dona de casa, não como camponesa. A venda direta dá autonomia econômica para a mulher e resolve o problema da comercialização.
Por outro lado, quem compra do Pnae são as escolas públicas, que é onde os filhos dessas camponesas estudam. Então, elas constroem parte da autonomia econômica a partir da produção na terra e sabendo que os filhos estão comendo comida saudável, afinal, são elas que estão na produção.
Michela Calaça é agrônoma e integra o Movimento de Mulheres do Campo (MMC). Ela conta que encontrou no movimento de mulheres camponesas “a reunião daquilo que acredito ser essencial para um país mais igual”, a questão agrária e o feminismo. foto: Arquivo pessoal Michela Calaça é agrônoma e integra o Movimento de Mulheres do Campo (MMC).
Joio — Sabemos que, quando uma política pública beneficia a mulher, ela atinge a família. Há, em programas como o Pnae, relevância especial para a emancipação da mulher?
Michela — A divisão sexual do trabalho como é hoje faz com que se pense que a mulher camponesa e agricultora trabalha só em casa. Não que isso seja pouco. A gente sabe que o trabalho doméstico é muita coisa, mas no rural, as mulheres nunca fazem apenas o trabalho doméstico.
No rural, há semelhanças entre a produção de alimentos e o trabalho doméstico, como fazer biscoitos, bolos e doces. Esses produtos todos são vendidos para as escolas. E as duas coisas se misturam.
O Pnae é central para as mulheres, e elas sempre subsidiaram o programa com seus produtos. Até pouco tempo, a imensa maioria da produção era vendida no CPF dos maridos, mas a gente via que os produtos eram claramente feitos por mulheres. Houve um processo de luta das camponesas para que a venda fosse feita também no CPF delas, por entender que, além da venda, era fundamental que tivéssemos autonomia de venda. E conseguimos.
“Até pouco tempo, a imensa maioria da produção era vendida no CPF dos maridos. Mas a gente via que os produtos eram claramente feitos por mulheres”
Joio — De que forma a venda estava atrelada ao CPF dos maridos?
Michela — Programas como o Pnae e também o PAA têm como base vender uma quantia determinada por família. Cada família camponesa tem 20 mil para vender, por exemplo. A sociedade, e mais precisamente o sistema patriarcal, organiza a família na ideia de um chefe de família; é essa pessoa quem participa politicamente das decisões no campo. Geralmente, esse chefe é homem, mesmo que a mulher trabalhe muito na produção, às vezes, mais.
São eles que estão nas cooperativas e nos sindicatos. São eles que negociam formalmente nas feiras, embora na comunidade essa função de mediação, de fazer política, seja dela. É a camponesa que conversa com os vizinhos, combina a troca de produtos, a venda conjunta, mas como nos espaços de decisão quem está são os maridos, acabava sendo natural que a comercialização fosse no nome deles.
Nas famílias em que não havia grandes conflitos dentro de casa, as mulheres não se incomodavam, porque aquela renda se voltava para a família, mas isso não é a realidade de todas. A verdade é que, na maioria das vezes, o homem vendia a produção, usava o dinheiro como bem entendia e nem a mulher nem o resto da família via a cor do dinheiro.
A partir da organização das mulheres nos movimentos de agricultoras, surge essa reivindicação da importância do CPF da mulher estar atrelado à venda. Importante, ainda, que seja listado o nome de todos que trabalham naquela produção e não só do dito chefe da família. Mas que tenha lá o nome do jovem, da jovem, do senhor e da senhora.
A assistência técnica do programa, muitas vezes, não estava preparada para atender a família como um todo e atendia, na verdade, só o homem. Quando a mulher dizia: “eu tenho o meu biscoito e quero vender para o Pnae”, a parte técnica dizia que o CPF do marido já estava lá e assim era mais simples.
Com muita insistência, algumas mulheres conseguiam que essas vendas fossem no CPF delas, mas a regra era ir no CPF do marido. E é fundamental que seja no nome dela, seja para a comprovação de contribuição com a previdência, por exemplo, mas principalmente porque aquilo é fruto do trabalho dela. Como é isso? Alguém trabalha e outra pessoa recebe o dinheiro?
“A verdade é que, na grande maioria das vezes, o homem vendia a produção, usava o dinheiro como bem entendia, e nem a mulher e nem o resto da família via a cor do dinheiro“
Joio — Mas não há no programa a indicação de que uma porcentagem seja feita exclusivamente para as mulheres. É uma recomendação para que o CPF da mulher seja registrado na venda?
Michela — Exato. No PAA, as mulheres conseguiram uma porcentagem dos recursos. Nesse caso tem, obrigatoriamente, que sair no CPF de mulheres. O processo do PAA foi interessante. A gente já sabia que boa parte da produção era delas. Raramente, os agricultores produzem bolo, biscoito. Tem, mas é raro. A depender da região, são as mulheres que produzem o queijo também. Agora é possível ver nos documentos os produtos e quem de fato fabrica aquele alimento. Isso é fundamental para a cidadania dessa mulher e também para a consolidação de diversos direitos que ela precisa acessar. Mas o mais importante: para que elas tenham o dinheiro na conta delas.
Joio — Há diferença no modo de produzir da agricultora para o agricultor?
Michela — O que a gente vê é que a produção das mulheres é mais diversa. Isso acontece porque, quando foi feita a extensão rural no Brasil, quem fez a revolução verde não olhou para as mulheres, olhou para os homens. Você vai no quintal de uma camponesa e vê hortaliças, planta medicinal. Toda essa diversidade se expressa no Pnae.
Ela pode não ter 500 quilos de goiaba, mas tem 50. Ela coloca, então, os 50 quilos da goiaba, dez de banana e um tanto de hortaliças. Diferente do que geralmente acontece numa produção mais parecida com os latifúndios. O cara produz toneladas de feijão, mas ele só vende feijão e nada mais.
Se a diversidade alimentar é a base da alimentação saudável, colorida, nutritiva, ela vem das mulheres, e com um elemento a mais: é raríssimo encontrar uma camponesa que coloca veneno na produção.
Ela sabe que aquela plantação é para alimentar os vizinhos dela, os filhos, e não vai colocar uma coisa que ela sabe que mata. É diferente de quem produz só para vender e produz de qualquer forma.
Lembro muito da época em que eu era criança, que a merenda era biscoito Mabel, um mingau feito à base de uma fórmula. A gente nem sabia o que era aquilo. O que é a alimentação depois que começamos a introduzir no mínimo 30% da agricultura familiar a partir do Pnae? Virou uma enorme diversidade. Tem arroz, feijão, salada, carne, fruta, sucos. Parte disso é pelas mulheres estarem na produção, no preparo e também no meio do processo, fazendo luta para que existam políticas públicas como essas.
“Se a diversidade alimentar é a base da alimentação saudável, colorida, nutritiva, ela vem das mulheres, e com um elemento a mais: é raríssimo encontrar uma camponesa que coloca veneno na sua produção”
Ela conta que encontrou no movimento de mulheres camponesas “a reunião daquilo que acredito ser essencial para um país mais igual”, a questão agrária e o feminismo. foto: Arquivo pessoal. Ela afirma que a produção das mulheres camponesas é mais diversificada e raramente utiliza agrotóxicos, porque elas sabem que é essa a comida que vai alimentar os vizinhos, os filhos e os estudantes da escola. foto: Arquivo pessoal
Joio — É possível afirmar, então, com base nesse trabalho que vocês fazem, que a agricultura, assim como os indígenas na forma de lidar com a terra, sustenta uma relação que beneficia a natureza e a nossa saúde?
Michela —
A relação que as mulheres criam com a produção é claramente outra. As mulheres comercializam, tocam a produção, vendem nas feiras de agricultura familiar, mas a lógica de fazer essa comercialização não é a do lucro acima de tudo. É uma relação com a natureza que tende ao equilíbrio.
Eu estava conversando com uma camponesa uns tempos atrás sobre ser vegetariano ou não ser vegetariano, e ela disse: “Olhe, não consigo entender como um camponês ou uma camponesa explora os animais só porque usam esse animal para a sua alimentação…”. E, aí, ela foi descrevendo: “eu tento dar a melhor condição para minha galinha botar o ovo: dou a ela a melhor comida, coloco ela num lugar que seja fresco, protejo para que outros animais não a ataquem”.
A relação da mulher com a natureza não é uma relação intocada. É, de fato, uma relação, a gente precisa da natureza, precisa produzir, precisa se alimentar, precisa alimentar quem não produz, mas a gente não faz disso uma relação de exploração. É quase uma simbiose.
Joio — Se na elaboração do programa havia esse problema básico de atrelar a venda ao CPF dos maridos, como fica a assistência para que as mulheres tenham condições de produzir?
Michela —
A grande maioria não tem assessoria técnica. Às vezes, a única fonte de informação é o sindicato e nem sempre os sindicatos têm grandes condições de fazer as informações chegarem a todo mundo. Então, a política pública precisa potencializar o enfrentamento às desigualdades.
As agricultoras costumam ser mais auxiliadas por outros atores. A ASA [Articulação do Semiárido Brasileiro], por exemplo, presta assessoria técnica, com trabalho agroecológico, aos agricultores, que potencializa a participação das mulheres.
Tem o programa “Água de Beber”, que fez com que as mulheres deixassem de percorrer longas distâncias para buscar água, e o “Água de Produção”, que são as cisternas, diretamente ligado a uma produção de quintal. Isso é um potencializador da produção das mulheres, porque quem produz em quintal é a mulher. Ela quer ter a abóbora dela para fazer o refogado para a família, e o excedente ela vende para o Pnae, para o PAA.
O dinheiro que ela conseguiu vendendo as abóboras que sobraram ou com o pão de abóbora que ela fez, vai para ela comprar grãos, outras carnes, frutas que ela não conseguiu plantar e outras coisas que ela precisa ter em casa, como telefone e internet.
Se tivéssemos o indicativo de que parte dos produtos da agricultura familiar que vai para o Pnae deve ser comprado direto de campesinas, a assistência técnica para ela produzir viria como um segundo passo natural.
Joio — Se as agricultoras têm dificuldade em vender, como fica o acesso delas a esses programas que dão assistência para a produção e para as condições de vida dela no campo?
Michela — As mulheres que estiverem organizadas vão ocupar algum espaço. Se o programa tem um foco, ele consegue melhorar a nossa vida. Se ele não tem esse foco, as mulheres que não estiverem organizadas em cooperativas, movimentos, dificilmente vão acessar.
Em um dos programas da ASA, a prioridade são as mulheres chefes da família. O número de mulheres que vão participar do programa já vai ser muito maior. Isso falta no Pnae. Ele é um programa importante, mas é fundamental potencializar o olhar de gênero, raça e etnia para combater as desigualdades que estão dentro do próprio seio da agricultura familiar. Toda desigualdade se reproduz também dentro dos microcosmos, entre os trabalhadores, no campo, e na própria pobreza.
“Isso falta no Pnae. Ele é um programa importante, mas é fundamental potencializar o olhar de gênero, raça e etnia para combater as desigualdades que estão dentro do próprio seio da agricultura familiar”
Michela aponta que um dos principais desafios enfrentados pelas agricultoras é a comercialização da produção e que a pandemia foi brutal para elas — em um cenário que já era, há anos, de um “deserto de políticas públicas”. foto: Arquivo pessoal do MMC
Joio — Para a mulher, em geral, em função da jornada contínua de trabalho – trabalho remunerado, trabalho doméstico, trabalho dos cuidados – é mais difícil estar nos espaços de decisão. A mulher camponesa consegue se organizar e estar nesses espaços?
Michela — Para a mulher é mais difícil se organizar, mas especialmente no rural. No rural é difícil para a mulher sair de casa. Não tem ônibus passando na porta. Ela anda quilômetros para esperar por horas um ônibus ou para conseguir um sinal de internet. Elege-se um representante para sair de casa e resolver tudo que está no espaço público e a agricultura fica confinada.
Há movimentos de trabalhadoras rurais há muito tempo. Desde as décadas de 1950 e 1960, só que isso não existe em todas as comunidades nem em todos os lugares do Brasil. Para as mulheres conseguirem avançar, elas precisam estar organizadas em todo canto. É conversando com outras mulheres que ela percebe que a situação de violência que ela vive outras também vivem.
Joio — A pandemia e o descompasso de políticas públicas relativos ao Pnae, com o fechamento de escolas e a falta de diretrizes mais afirmativas sobre a alimentação escolar foram penosos para a agricultura familiar nos anos de 2020 e 2021. Qual foi o efeito desse vazio de compras na vida das agricultoras?
Michela — A pandemia foi brutal para as camponesas e isso está revertendo agora em queda de produção e abastecimento. Quando a pandemia começou, uma das primeiras medidas foi fechar as feiras livres. Por outro lado, os supermercados continuam abertos. Nós denunciamos. Para não jogar tudo fora, as agriculturas se juntaram às ações de solidariedade e doaram os alimentos.
Quem fazia venda direta, com cestas de produtos agroecológicos para o consumidor final, também se deu mal, porque a população perdeu renda, o desemprego estourou. Com isso, elas pararam de produzir. Houve um recuo de produção porque não tinha para quem vender.
Além disso, o governo não liberou crédito para a agricultura familiar. Tem sido dramático e teve muito retrocesso. Há relato das mulheres dizendo que agora, se precisam comprar alguma coisa, têm de pedir para o marido ou algum parente. Em alguns locais, como aqui no Rio Grande do Norte, foi feita a opção intencional do governo de manter a compra da agricultura familiar e distribuir para as famílias dos estudantes. Em muitos outros estados não foi assim. As famílias receberam cartões com crédito. Os lugares que direcionaram as ações de forma intencional para preservar a agricultura familiar e continuar alimentando seus estudantes, a sua população, houve menor perda. Mas o que sabemos é que, na maioria dos lugares, as ações foram genéricas ou não teve.
“A pandemia foi brutal para as camponesas, e isso está revertendo agora em queda de produção e abastecimento […] Além disso, o governo não liberou crédito para a agricultura familiar. Tem sido dramático e teve muito retrocesso”
Joio — As camponesas estão conseguindo produzir este ano?
Michela — Produzir tem custo. Mesmo que a semente seja nossa, precisamos de ferramentas, de materiais. Se eu não conseguir vender, tenho que diminuir a produção. Se não chover, a mesma coisa. É a mesma lógica para a comercialização. O produto é perecível e estraga, então, vou produzir pensando no mercado que tenho. A primeira movimentação da produtora é o investimento.
Passamos 2020 inteiro tentando fazer o governo federal entender que a agricultura familiar precisava de crédito e não houve essa escuta. Nós passamos 2020 inteiro e estamos até agora em 2021 tentando aprovar o projeto Assis Carvalho 2, que prevê a liberação de um fomento emergencial no valor único de R$ 2.500, podendo chegar a R$ 3 mil em caso de famílias lideradas por mulheres.
A gente precisa estimular a produção rural em meio aos estragos causados pela crise sanitária, que afetou drasticamente a vida das famílias camponesas. É preciso comprar as ferramentas, todos os insumos, e se eu não comercializei na produção passada e não tenho crédito, terei problemas para produzir este ano.
Estamos vivendo esse drama agora. Estamos há vários anos vivendo um deserto de políticas públicas, e vendo outras, como o próprio Pnae, perdendo força sem uma articulação nacional que faça com que o programa aconteça em todo o canto do país. O governo está se negando a vir em socorro do pequeno agricultor, que bota comida na mesa de todo mundo. Não é difícil entender por que o preço dos alimentos está tão alto, e se as coisas não mudarem, vai ficar mais alto ou, pior, não vai ter.
Por meio do Decreto 10.833/2021, regulamentação sobre uso e registro de agrotóxicos foi alterada sem a participação do Congresso Nacional e da sociedade civil
São Paulo, 27 de outubro de 2021 – O Decreto Presidencial 10.833/2021, “incorporou o que há de mais crítico do pacote do veneno” é o que aponta nota técnica publicada nesta quarta-feira (27) e revela, em dezesseis pontos, os graves impactos à saúde humana, ao meio ambiente e à agricultura brasileira que a medida irá trazer.
Sem a participação do Congresso Nacional e da sociedade civil, na sexta-feira (08) deste mês, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), publicou no Diário Oficial o Decreto Presidencial 10.833/2021 que altera a Lei de agrotóxicos, de 1989, e flexibiliza a aprovação de agrotóxicos no país, inclusive de substâncias que já são proibidas nos Estados Unidos e na Europa.
A nota técnica já conta com a adesão de 135 pesquisadores e pesquisadoras e mais de 100 organizações e coletivos da sociedade civil. Assinado também por parlamentares, entre eles membros da Frente Parlamentar Ambientalista, o documento destaca que o Decreto vai na contramão do que os mercados consumidores internacionais preocupados com a crise climática têm exigido, já que estes têm buscado cada vez mais fornecedores de alimentos livres de agrotóxicos e da destruição de florestas.
Para a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e membro do grupo temático Saúde e Ambiente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), Karen Friederich, o Decreto Presidencial é mais um retrocesso. “As alterações trazidas pelo Decreto 10.833/21 são muito preocupantes. Dificultam o acesso a informações relevantes para a sociedade, mas principalmente, permitem que sejam registrados no país produtos muito tóxicos para a saúde das pessoas, em especial de grupos mais suscetíveis, como agrotóxicos reconhecidamente cancerígenos, que causam problemas hormonais e reprodutivos, além de malformações em bebês”, explica a pesquisadora. “Estamos indo na contramão de outros países que buscam fortalecer a produção de alimentos de forma saudável, para quem come e quem planta”, complementa.
Pacote do veneno e sua nova roupagem
De acordo com as organizações que vêm acompanhando o tema dos agrotóxicos e a flexibilização no registro e aprovação dessas substâncias que tem batido recordes durante a gestão da Ministra da Agricultura Tereza Cristina, o atual decreto nada mais é do que uma nova roupagem para o pacote do veneno, de autoria do ex-senador Blairo Maggi. O projeto já foi aprovado pelo Senado Federal e em 2018 também fora aprovado na Comissão Especial da Câmara onde tramitava, sob relatoria do Dep. Luiz Nishimori e a presidência da então Dep. Tereza Cristina, mesmo sob intensa pressão da sociedade. Na época, diversas organizações públicas se posicionaram contra a medida e quase 2 milhões de pessoas também assinaram um manifesto contra o projeto de lei, e em favor da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA).
O Decreto Presidencial é tido como inconstitucional, pois ao facilitar o registro de substâncias cancerígenas, mutagênicas, teratogênicas, e que causam distúrbio hormonal ou ao aparelho reprodutor – um dos pontos trazidos pela medida e apontados como dos mais críticos do pacote do veneno – viola os direitos fundamentais e sociais garantidos pela Constituição Federal.
Contatos para imprensa:
Ednubia Ghisi, Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida | (41) 99122-5303
Confira os 17 pontos mais graves do novo decreto de Bolsonaro sobre agrotóxicos
Confira a análise técnica feita pela Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida que identificou as principais mudanças, retrocessos e possíveis ilegalidades do decreto 10.833/2021.
O presidente Jair Bolsonaro usou a véspera do feriado, na última sexta-feira (8), para publicar o decreto 10.833/2021 e impor parte do Projeto de Lei 6.299/2002, conhecido como Pacote do Veneno. Entre as novidades trazidas pelo decreto estão pontos que aprofundam a flexibilização da aprovação de agrotóxicos no Brasil, inclusive com facilitação do registro de venenos causadores de câncer e mutação genética.
O dispositivo altera o Decreto nº 4.074/2002, que regulamenta a lei brasileira de agrotóxico (7802/1989). Para Naiara Bittencourt, advogada popular da Terra de Direitos e integrante da Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o decreto é ilegal e inconstitucional na forma e no conteúdo, como um ato direto do presidente e sem participação do Congresso Nacional ou da sociedade civil.
“O ato usurpa as competências do Poder Executivo porque inova e afronta vários dispositivos da atual Lei de Agrotóxicos, a Lei 7.802/1989, além de violar direitos fundamentais e sociais da Constituição Federal, como o direito à vida, à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à alimentação adequada”, enfatiza.
Ainda na sexta-feira, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida divulgou uma nota em repúdio ao novo decreto. Nesta quarta-feira (13), um grupo de 35 deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) apresentou um projeto de decreto legislativo com o objetivo de derrubar o decreto assinado por Jair Bolsonaro. Entidades também estudam a proposição de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
Confira abaixo a análise técnica feita pela Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida que identificou as 17 principais mudanças, retrocessos e possíveis ilegalidades do decreto 10.833/2021:
Desde o golpe de 2016, o número de registro de agrotóxicos vem aumentando exponencialmente. Este controle por parte da sociedade só pode ser feito, pois atualmente os novos registros são publicados no DOU. A nova redação deixa aberta a possibilidade de publicação no Sistema de Informações de Agrotóxicos (SIA), que não sabemos nem se realmente existe e nem se será público quando estiver em operação.
Fonte: Art. 2o – XV e Art. 14o
O Ministério da Saúde agora passa a adotar oficialmente a avaliação de risco. Isso significa dizer que, mesmo que um agrotóxico apresente uma característica muito grave (por exemplo, ser cancerígeno), ele ainda pode ser aprovado caso se avalie que nas condições de uso ideais o risco de que ele cause câncer é “aceitável”. Na prática, esse ponto pode acabar com os atuais critérios proibitivos de registro previstos na Lei 7802. Não há risco aceitável para doenças graves e irreversíveis!
Fonte: Art. 6o – I e III
Previsto no Pacote do Veneno
Possivelmente ilegal pois confronta a Lei 7802
Agrotóxicos não são usados apenas na agricultura. Também são usados em campanhas de saúde pública (mata-mosquito) e em produtos utilizados em casa (sprays para matar insetos). Estes produtos não necessitarão mais de avaliação de eficácia pelo Ministério da Saúde, ou seja, quem diz se ele funciona ou não é apenas o Ministério da Agricultura.
Fonte: Art 6o – II e IV
4. Agrotóxico registrado para agricultura pode facilmente ser usado para ambientes hídricos e até capina química
O novo decreto simplifica a autorização de um agrotóxico agrícola para usos diferentes daquele registrado inicialmente. O uso de agrotóxico em ambientes hídricos, florestas nativas e ambientes urbanos e industriais pode representar até maior exposição da população. Por isso, todos os estudos necessários devem ser feitos antes de autorizar este tipo de uso. Este trecho inclusive pode legalizar a capina química urbana.
Fonte: Art. 8o
5. Após o registro de um agrotóxico, outros produtos contendo o mesmo ingrediente ativo terão menos estudos exigidos
Os estudos de eficiência e praticabilidade não serão mais necessários caso se registre um produto formulado com ingrediente ativo já registrado. Um produto formulado de agrotóxico possui outros ingredientes além do ingrediente ativo, que inclusive podem ser até mais tóxicos. Por isso, dois produtos formulados com o mesmo princípio ativo precisam passar por todos os estudos, pois podem ter diferenças bastante significativas.
Fonte: Art. 10o – § 14
6. Mais agrotóxicos poderão furar a fila e ter prazo de registro reduzido, gerando pressão sobre órgãos de saúde e ambiente, sem aumento de capacidade técnica de análise
O novo decreto define que o MAPA pode determinar, por diversos motivos, que agrotóxicos possam furar a fila de registro. O decreto original já previa priorização dos agrotóxicos de baixa toxicidade, porém após a resolução da Anvisa uma grande parte das substâncias agora é considerada de baixa toxicidade. Com isso, corremos o risco de uma enxurrada de priorizações, que colocará ainda mais pressão sobre os órgãos de saúde e meio ambiente, que precisarão analisar mais pedidos em menos tempo.
O poder de definir quem é prioritário fica nas mãos do MAPA.
Fonte: Art. 12o C e 14o § 3º
Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil
7. Apesar de estabelecer prazos rígidos para o registro de um agrotóxico, o decreto não estabelece prazo para reavaliação
O decreto estabelece prazos que vão de 6 meses a 3 anos para conclusão da avaliação dos processos de registro de agrotóxicos. Estes processos muitas vezes envolvem análises complexas de estudos científicos, e são realizados por órgãos que não possuem a quantidade necessária de pessoal capacitado tecnicamente.
Porém, para a reavaliação de um agrotóxico, ou seja, quando surgem novos estudos que podem banir uma substância atualmente registrada, o decreto não estabelece prazo. O Paraquate, por exemplo, teve sua reavaliação iniciada em 2008, e apenas em 2021 aconteceu seu banimento completo. Foram 14 anos de uso de uma substância que já se sabia que deveria ser banida.
Mais uma vez, o interesse das empresas de agrotóxicos se sobrepõe à proteção da saúde da população.
Fonte: Art. 15o
Além disso, o MAPA concentra mais poderes do que os órgãos de saúde e meio ambiente na aprovação de autorizações.
Fonte: Art. 22o
Os critérios proibitivos previstos na Lei 7802 serviram até hoje para impedir o registro de agrotóxicos muito perigosos, ou para disparar o processo de reavaliação, caso estes efeitos não fossem conhecidos no momento do registro. O novo decreto permite estabelecer uma “dose segura” para agrotóxicos que causem este efeito. Porém, para agrotóxicos com efeitos graves como câncer ou que causem desregulação hormonal, qualquer dose acima de zero é suficiente para causar dano.
O novo decreto pode inclusive permitir que agrotóxicos já banidos voltem ao mercado.
Fonte: Art. 31o § 3o
Retrocesso legal/possivelmente conflitante com Lei 7802
Atualmente, a informação deve ser entregue a cada 6 meses, e também aos estados. Esta prática permite que sejam tomadas providências em tempo razoável em caso de alteração do padrão de uso (por exemplo, efetuar análises de água em agrotóxico que teve aumento do uso).
Fonte: Art. 41o
11. Laudos de impurezas não devem mais ser enviados pelas empresas
Pelo novo decreto, tais laudos devem ser apenas guardados pelas empresas. Impurezas muitas vezes podem ser mais tóxicas do que o próprio princípio ativo.
Fonte: Art. 66o § 2o
O novo decreto estabelece ser possível a revalidação, retrabalho ou reprocessamento de produtos agrotóxicos. Na prática, isso legaliza a venda de agrotóxicos vencidos. O decreto exige que devem ser mantidas as especificações de registro, porém a comprovação é inviável, na prática, pois todos os testes teriam que ser refeitos. Além disso, é impossível garantir a estabilidade da substância vencida, bem como o tempo pelo qual as condições serão mantidas.
Fonte: Art. 69-A
O critério de “risco dietético aceitável” é altamente questionável, pois não considera interações com outros alimentos contaminados e as especificidades de cada pessoa.
Fonte: Art. 86o § 8o
Apesar de prever o desenvolvimento de um Sistema de Informações de Agrotóxicos (SIA), e de prever que muitas informações saem do DOU e ficam publicadas no SIA, o decreto não garante o acesso da população a informações deste sistema.
Fonte: Art. 94
O decreto prevê a figura do aplicador de agrotóxicos, o que é positivo, no entanto, dispensa sua obrigatoriedade para agrotóxicos considerados de baixo risco. Porém, a classificação toxicológica que determina agrotóxicos mais ou menos perigosos refere-se somente aos efeitos agudos. Nesse sentido, a dispensa não se aplica, porque agentes pouco tóxicos do ponto de vista agudo podem estar associados a efeitos crônicos graves e potencialmente irreversíveis, como câncer, mutações, desregulação endócrina e outros.
Fonte: 96-A Parágrafo único
16. Agrotóxicos não registrados no Brasil poderão ser fabricados aqui para exportação
Vários agrotóxicos já foram proibidos no Brasil por representarem enorme risco à saúde ou ao meio ambiente. Como exemplo, podemos citar os organoclorados, como DDT (diclorodifeniltricloroetano), que provocam danos no sistema nervoso central, e são persistentes no ambiente. Apesar de não estar previsto explicitamente no novo decreto, o próprio Ministério da Agricultura afirmou em nota a previsão de produção de agrotóxicos não registrados para exportação. Isso significa riscos em toda a cadeia industrial de produção e transporte, além de empurrar para outros países com regulações mais frágeis produtos muito perigosos.
Ainda que o agrotóxico seja exportado, ele será fabricado e transportado no Brasil. Assim, suas indicações devem ser as mesmas que foram concedidas a partir dos estudos que concederam o registro no Brasil.
Fonte: Art. 95-A)
Mulheres camponesas de Alagoas promovem ações solidárias conectando campo e cidadePor Edcleide da Rocha Silva
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O projeto que recebe nome de “Camponesas organizadas na partilha de saberes: em defesa da mãe terra e em prol da segurança e soberania alimentar”, nasce da parceria de trabalho coletivo campo/cidade, desenvolvido em tempos de pandemia entre o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e a campanha Periferia Viva do Movimento de Trabalhadores por Direitos (MTD) no estado de Alagoas.
A iniciativa faz parte de um conjunto de projetos que recebem apoio do Fundo Casa Socioambiental, através da chamada GAGGA 2021 (Global Alliance for Green and Gender Action). Um dos objetivos é promover ações de formação e solidariedade no que diz respeito ao direito e acesso alimentar, como também da defesa da mãe natureza.
No dia 14 de setembro de 2021, a solidariedade se materializou através da diversidade produtiva que sai diretamente dos roçados camponeses para as famílias da orla lagunar de Maceió, promovendo autonomia econômica e visibilidade para as mulheres envolvidas na produção e acesso a uma alimentação digna por parte das famílias em situação de insegurança alimentar que recebem os produtos.
As cestas agroecológicas compartilhadas desempenham papel político, de organização, de formação e de luta. Também são construídos espaços de formação coletiva entre o MMC, a campanha Periferia Viva, Agentes Populares de Saúde e MTD, firmando momentos de partilha de saberes
“É importante ter atenção e amor na organização das cestas, usar o álcool e as máscaras, que neste momento são fundamentais para evitar uma possível contaminação dos alimentos que são doados”, explica Maria Lucilene dos Santos, camponesa, militante do MMC no Assentamento Zumbi dos Palmares, do município de Branquinha, demonstrando que o cuidado com o outro é ter respeito à vida.
A comunidade Muvuca, localizada no Vergel do Lago, que recebeu as cestas nessa ação, faz parte da orla lagunar maceioense, que historicamente sobrevive da pesca artesanal e está em estado de vulnerabilidade durante a pandemia da covid. São ações de cunho solidário que dão novas perspectivas para a comunidade e, ao mesmo tempo, demonstram a capacidade de organização social dentro dos territórios.
As gestoras do projeto observam que a falta de políticas públicas para com as comunidades periféricas, só faz crescer a marginalização. Nesse sentido, o projeto recebe o reconhecimento de parceiros estratégicos, como a professora Maria Edna Bezerra da Silva, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas (UFAL): “As ações de solidariedade empreendidas pelas mulheres camponesas fazem muita diferença neste momento”, destacou. Ela que tem acompanhando de perto a comunidade Muvuca, através das atividades de formação dos agentes populares de saúde.
O projeto mostra que a solidariedade é um princípio pedagógico e dinâmica organizadora do povo trabalhador, tanto do campo quanto da cidade. Assim as camponesas reafirmam o seu grito de ordem: “Fortalecer a luta em defesa da vida. Todos os dias!”
Por Edcleide da Rocha Silva
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Depois de seis anos estudando medicina na Venezuela, longe de suas casas, dos familiares e das amizades locais, as jovens camponesas do MMC estão a um passo de receber o diploma de Medicina. Começaram nessa semana a fazer as defesas de Trabalho de Conclusão de Curso – TCC.
“Estudar medicina me trouxe muitos desafios, como a adaptação a uma nova língua e a um novo país. A Venezuela passa por diversos processos de mudanças políticas, sociais, econômicas e culturais, bem como enfrenta os bloqueios econômicos constantes, processos que deixariam qualquer um que não conhece a realidade em estado de loucura”, conta Soraia Santana, a nova médica do povo.
Turma em que Soraria está se formando
Para a estudante de Medicina, completar esse processo formativo, com escassez de recursos, desde materiais didáticos a outros, não foi fácil. Mas, conforme explica, sempre se sentiu fortalecida com as tantas pessoas que mesmo com todas as dificuldades, semeiam esperança por uma medicina humana, trabalhando com dedicação e determinação de defender a vida.
“Foi a experiência mais incrível da minha vida”, conta a jovem, depois de vivenciar o cotidiano de um país como a Venezuela, que luta contidamente para seguir adiante e de conviver com a diversidade de pessoas que formam a Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) que se concretiza no misto de vários países do mundo.
Turma ELAM 2015-2021
Segundo Soraia, que é do estado da Bahia, filha de camponesa e dirigente do MMC, “estudar medicina foi e é desafiante, pois é preciso se propor todos dias a seguir estudando”. Enfatizou que “esse sonho é um sonho que se concretiza por e com muitas mãos”.
Jovens do MMC – turma 2015, formam em 2021
Seus agradecimentos iniciam pela família, em especial à mãe, e se estendem aos movimentos – MMC, MST e La Vía Campesina -, que por meio da organicidade coletiva e do modelo bolivariano de uma Medicina popular concretiza um processo mais humano do cuidado com o outro. “Tenho certeza que a médica que estou me formando será mais humana por todo esse processo”, finaliza.