Carta da Nicarágua: LA REVOLUCIÓN - MMC - Movimento de Mulheres Camponesas

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Carta da Nicarágua: LA REVOLUCIÓN

A estrada é de terra e a mata, fechada. Quanto mais caminhava, mais ameno o clima ficava, em cima da montanha havia brisa fresca, apesar do sol quente. A placa indicava que chegávamos à Comunidad Santa Julia del Crucero, de longe vi que a comunidade estava em festa. Decorada com bexigas verdes e lilás e faixas de boas-vindas, a Cooperativa de Mulheres Glória Quintanilla se apresentou como espaço político em que jovens, adultas e idosas da comunidade se organizam, buscando alcançar a soberania alimentar com projetos que promovem a agroecologia e estabelecer relações igualitárias…

Por Ísis Menezes Táboas
El Crucero/Nicarágua, outubro de 2016. 
 
 
A estrada é de terra e a mata, fechada. Quanto mais caminhava, mais ameno o clima ficava, em cima da montanha havia brisa fresca, apesar do sol quente. A placa indicava que chegávamos à Comunidad Santa Julia del Crucero, de longe vi que a comunidade estava em festa. Decorada com bexigas verdes e lilás e faixas de boas-vindas, a Cooperativa de Mulheres Glória Quintanilla se apresentou como espaço político em que jovens, adultas e idosas da comunidade se organizam, buscando alcançar a soberania alimentar com projetos que promovem a agroecologia e estabelecer relações igualitárias entre mulheres e homens da comunidade, enfrentando relações de violência e de opressão. 
 
 
Ao longo do dia, elas nos apresentaram suas construções, uma escola que conta com duas professoras e atende a trinta e cinco crianças pequenas da comunidade, suas casas e, especialmente, suas lavouras. A produção é desenvolvida com sementes crioulas, sem agrotóxicos, com variedade na plantação de alimentos saudáveis e diversas técnicas para o armazenamento de água da chuva. A comunidade não tem água encanada, possui apenas um poço feito durante a ditadura Somozista. Há um projeto, parceria entre a Cooperativa de Mulheres e a ATC (Asociación de Trabajadores del Campo), que já arrecadou parte do valor para a construção de um novo poço. 
 
Esta é uma das montanhas onde acampavam guerrilheiras e guerrilheiros na época clandestina da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), assim chamada desde 1963, quando a Frente de Libertação Nacional se inspirou nas ideias anti-imperialistas de Augusto César Sandino, general guerrilheiro do Exército Defensor da Soberania Nacional composto por camponeses que combateram fuzileiros navais estadunidenses de 1927 a 1932. Dois anos depois de vencerem os marines, General Sandino foi assassinado pela Guarda Nacional, financiada e treinada por norte-americanos, a mando de Anastásio Somoza García. 
 
Na década de 1970, neste acampamento nas montanhas de El Crucero, os guerrilheiros e as guerrilheiras inspiradas pela Revolução Cubana estudavam marxismo-leninismo, e treinavam para luta armada organizadas pela clandestina FSLN, que teve o protagonismo e o comando feminino em diversas batalhas.
 
Dora Maria Tellez comandou a Frente Ocidental do exército guerrilheiro e foi a “Comandante Dois” do ataque ao Palácio Nacional. Nora Astorga foi a responsável pela emboscada que levou à morte um dos mais odiados torturadores da Guarda Nacional de Somoza. Doris Tijerino, com 23 anos, de classe média, compunha as fileiras da FSLN e assinou o manifesto “Sandino sim, Somoza não” como integrante do Diretório Nacional e foi descrita pelo jornal como traidora da sua classe e sexo, “comunista fanática, não teve escrúpulos em oferecer sua intimidade feminina como elemento de escândalo”.
 
 
Em Ticuantepe, na Escuela Obrera Campesina Internacional – Francisco Morazán, eu ouvi depoimentos de algumas senhoras que na juventude lutaram contra a Ditadura de Somoza, uma delas contou como perdeu o braço em uma emboscada da Guarda Nacional, outra porque com 12 anos contribuía com a guerrilha, e aos 16 subiu às montanhas. A terceira contou sobre gravidez, parto e maternidade durante a guerrilha. Conheci também como homens da Guarda Nacional que subestimaram a força e a capacidade política e militar das mulheres sandinistas foram enganados e executados por elas; com as mulheres armadas e preparadas para guerrear, as relações de poder com os homens foram alteradas.
 Contaram-me algumas das regras para as guerrilheiras mulheres: aquelas que ficavam nos aparelhos deveriam dormir de calças compridas e botas para fugir rapidamente em caso de ataque; durante a guerrilha, deveriam cortar relações com familiares, companheiras/os e filhas/os que não compusessem a FSLN. Para casais em que ambas/os estivessem na organização, era permitido viverem juntas/os, desde que obtivessem autorização de suas/seus superioras/es. A história é tão viva como suas sobreviventes e faz brilhar os olhos de cada uma que a construiu e, agora, a conta. 
 
No centro de Manágua, ouvi o cantor Carlos Mejía Godoy que, juntamente com seu irmão, criou a Guitarra Armada, uma tática da guerrilha sandinista em que, através de música, passavam instruções militares e informações sobre armas e explosivos para a população majoritariamente analfabeta.
 
O fato é que na década de 1970, a massa popular nicaraguense se armou contra o regime ditatorial financiado pelo Império Estadunidense, que detinha grande parte das terras nacionais e explorava camponesas/es e trabalhadoras/es urbanas/os. Nas regiões rurais, o índice de analfabetismo era de setenta e cinco por cento e no caso da população feminina tendia a cem por cento; oitenta por cento dos lares não tinham nem água encanada, nem eletricidade. Com a crescente concentração de terras nas mãos de estrangeiros, o povo camponês migrava para as cidades, especialmente para Manágua, onde viviam em favelas de casas de papelão. Nicarágua tinha a mais baixa expectativa de vida da América Central (53 anos) e segundo maior índice de mortalidade infantil.
 
Essa intensificação da crise capitalista e a violência do regime ditatorial contribuíram com o aumento da revolta popular e a criação de condições concretas para o triunfo a Revolução Popular Sandinista. Em 1979, a FSLN venceu a Guarda Nacional e o povo tomou o poder. Anastásio Somoza, cuja família governava o país havia quatro décadas, fugiu para Miami. 
 
Os anos subsequentes à Insurreição Popular foram de reforma agrária, confisco das terras de estrangeiros e de somozistas, alfabetização da população, reconstrução da história nicaraguense e renomeação de espaços públicos, a partir dos anseios populares. Ao mesmo tempo, foi uma década de bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos e fortes ataques contrarrevolucionários. 
 
No início da década de 90, diante das intensas pressões políticas e econômicas imperialistas, o neoliberalismo ganhou as eleições para Presidência da Nicarágua. Tão logo assumiu o governo, entregou aos estrangeiros as terras que haviam sido confiscadas pelo povo, e rebatizou os espaços com nomes que possuíam antes da Insurreição Popular. 
 
 
Voltando ao dia em que estive em El Crucero, uma refeição foi gentilmente servida pela Cooperativa. Em um prato verde, eu comi feijão vermelho sentada nas longas e envolventes raízes de uma árvore que me dava sombra. A minha cabeça estava a milhão, recordava cada uma das histórias que conheci nos dias anteriores e sentia a experiência pulsante daquela cooperativa de mulheres na montanha de El Crucero. Em cada colherada eu sentia o gosto irresistível de sonhar com uma outra sociedade, de desconstruir as relações desiguais de poder entre ricos e pobres, homens e mulheres. Cada colherada tinha o gosto da realidade: da relação dialética entre a dor das mulheres que passam cotidianamente por situações de violência e opressão naturalizadas pelo patriarcado e têm seus trabalhos reprodutivos invisibilizados e produtivos super explorados pelo capitalismo, em contraposição à energia feminina, socialista e feminista de resistência, de denúncia das injustiças, de organização e de luta para transformar os espaços políticos, públicos e privados. Desceu em minha garganta o feijão mais denso que já comi, temperado ao sabor da mística feminista, camponesa e popular.
 
Foi naquela mesma tarde que Lola, a dirigenta da comunidade, foi questionada por uma liderança do Anamuri, organização chilena de mulheres rurais e indígenas, sobre uma possível troca de nome da comunidade, cuja placa na entrada indicava Comunidad Santa Julia (nome dado em homenagem à genitora do ditador Somoza).  Com absurda convicção e um pequeno sorriso entre os lábios, Lola nos explicou que há um projeto de lei municipal para, formalmente, retirar o nome da placa e dos documentos, retornando ao nome escolhido pelo povo logo que triunfou a Insurreição de 1979. Com voz firme e segura, a dirigenta termina: el nombre de esta comunidad es La Revolución!
 
 
* Integrante de O Direito Achado na Rua, doutoranda em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília. Participante da III Escuela Continental de Mujeres Lideresas de la CLOC- La Via Campesina como representante do Movimento de Mulheres Camponesas- MMC.