Brutalidade no lar criou uma legião de pelo menos 155 órfãos
Kamila Almeida
Zero Hora
As tábuas que revestem o dormitório modesto, ocupado por quatro camas enfileiradas, emolduram também o desfecho trágico de uma vida breve. É neste ambiente ampliado às pressas, onde paredes foram derrubadas para que cozinha e quarto virassem um só cômodo, que agora vivem três meninas, testemunhas da transformação do amor em fúria.
Aninhadas ao colo da mãe, com quem dividiam o mesmo leito, as crianças — de quatro, três e um ano — tiveram o sono interrompido pela abrupta chegada do pai, na madrugada do dia 22 de dezembro, em Erechim. Antes que pudessem esboçar reação, presenciavam a primeira das 21 facadas no corpo de Chaiane Bueno de Lima, 24 anos.
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O pai das crianças, Fernando Cesar da Silva, 25 anos, está preso e é apontado pela polícia como suspeito.
Desgraças semelhantes se multiplicam. Só em 2012, além de Chaiane, outras 98 mulheres foram mortas por motivo passional em 59 municípios gaúchos. A média é de dois homicídios por semana. As vítimas da brutalidade forjada no lar representam quase metade do total de 200 mulheres assassinadas no Estado em todo o ano passado, aponta a Secretaria de Políticas para as Mulheres do Rio Grande do Sul.
Ainda mais alarmante que o número de óbitos é a estimativa da Fundação Perseu Abramo de que a cada 15 segundos uma brasileira sofre com a violência doméstica, um drama presente em todas as classes sociais e que extrapola as quatro paredes: em 2012, ele criou uma legião de pelo menos 155 órfãos.
A perversão de ter a vida ceifada a golpes de enxada, estocadas de faca ou tiros de revólver, como em geral esses crimes ocorrem, só não é maior do que expor os filhos a tais cenas.
Como resultado, custarão a deixar de propagar sentenças do tipo: "Se eu olhar para o céu eu vou enxergar a minha mãe?", como Brenda, "Tá todo mundo perdido, minha avó sem filha, eu e meus irmãos sem mãe", feito Nathália ou "Para dormir de noite é tão sofrido", do jeito que faz Suélen.
São estes filhos de mães mortas, filhos de pais presos que terão de conviver com as sequelas da morte como hematomas da alma.